Prólogo - Quando Mitos eram Vizinhos

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Muito Antes...

Olho freneticamente entre a multidão que grita e corre procurando qualquer refúgio. Depois que o boato se espalhou, o caos se formou tão depressa quanto fogo em palha seca. Eu não acreditei quando o profeta me disse. Não fiz nada quando tive a oportunidade e agora tudo parece disparar para a ruína. Lantriah tem que estar aqui.

Eu a vi mudando. Cada sutil desvio, cada olhar. Na maior parte da vida fiz de tudo para ser bom, ou achava estar fazendo. 

No dia em que a conheci, prometi a mim mesmo que nada mudaria, que nada me faria esquecer que ela é uma Deusa e eu um humano. Eu nunca deveria ter esquecido que um Deus sempre é perigoso, mas um Deus louco é destruição em cadeia.

Primeiro ela deturpou as plantas como meio de tomar território, em seguida os animais se tornaram parte de seu exército e depois finalmente deu um dos passos mais cruéis de sua jornada: envenenou as águas. 

Eu sabia que deveria ter feito algo, mas quando ela me olhava com aquela expressão doce e me dizia que aquilo era necessário para tirar os tiranos do poder, eu recuava.

Os outros escolhidos estavam com ela, eles a ajudaram. Cada um dos outros deuses motivados por sua cega devoção a ela, a ajudaram em cada sentença, em cada massacre.

Sorcer, o manipulador, era seu braço direito. Ele mantinha os fracos que sobreviviam controlados e adestrados. Dizem as lendas que onde Lantriah estiver, Sorcer também estará, seja para o bem ou para o mal.

Loyer, o colérico, se tornou um de seus generais. Nada em um campo de batalha se mantinha vivo após ele se libertar.

Gotsker, o divisor e doente, era seu espião. Somente sua presença era necessária para causar enfrentamentos em exércitos inimigos. Pestes eram espalhadas pelo simples fato dele se irritar.

E finalmente Sulivan, o profano ou fraco. Esse era o único que tentava fazer frente as atrocidades de seus companheiros. Acredito que ele era o ímpar entre os Deuses. Ele entendia como nós humanos nos sentíamos. Infelizmente, ele nunca era ouvido.

Eu deveria ter agido. Era eu quem dormia diariamente ao lado de Lantriah. Deveria a ter aconselhado quando tive a oportunidade, mas ao invés disso, ficava tão abobado com meu amor por ela que no fim, a vi se transformar em uma tirana amarga, impiedosa e cega por poder.

Um dia quando estávamos deitados nus e saciados sob a lua ela se virou com seus olhos, turquesa brilhando e disse as palavras que vão pesar em mim até o resto dos meus dias:

" — Sabe Keren, o poder é uma das forças mais intoxicantes que existe — Sua mão tocou meu peito, próximo ao coração — Sinto que cheguei a um ponto sem retorno..."

Quando ela me disse aquilo eu devia ter feito algo, mas na pressa de acalmar sua aflição eu simplesmente a beijei e beijei até o assunto ficar esquecido.

Muitas das vezes eu me via perdido entre eles. Um mero humano, eu pensava, amando a Deusa da terra e amando loucamente. Me perdi tanto nesse sentimento que deixei meus princípios de lado. Perdi muito tempo cego por esse amor. Tenho que tentar traze-la a realidade. Ela não pode fazer isso.

A imagem de apenas alguns dias atrás, quando Lantriah entrou em nosso quarto com um olhar insano, tem me assombrado todas as noites:

"Ela andava de um lado para o outro, seu corpo esguio e quase tão negro como o ébano, tremia de excitação. Quando enfim lhe perguntei o que estava acontecendo, ela me abraçou eufórica.

— Eu descobri meu amor! — Ela disse ao me soltar e olhar nos meus olhos — Eu descobri como acabar com todas essas guerras, com todo esse sofrimento... — Seus lábios carnudos se esticaram em um sorriso insano e me arrepiei com a certeza de estar em apuros — Devo simplesmente começar tudo do zero."

Naquela noite eu soube que nada mais voltaria ao normal. Pensei em alternativas e soluções, mas no fim percebi que só sentar e esperar ela voltar a si não adiantaria de nada.

Corro em direção a escadaria onde a vejo em pé com os outros. O palácio já escurecido pelo tempo, já não denota todo o esplendor de antes.

 Quando entrei aqui pela primeira vez fiquei tão encantado com a variedade de flores e pinheiros, que acredito ter ficado uns bons minutos só encarando. Seres transcendentais circulavam e voavam por todos os pátios. Era uma explosão de vida. Agora, entretanto, tudo que restou são as pedras encardidas e a tensão pungente da loucura.

Lantriah me vê e sorri docemente. Meu coração torce em meu peito, mas luto contra o sentimento. Meu amor e minha cegueira nos trouxeram a tanto sofrimento alheio.

Paro a cinco passos dela e a encaro. Seu sorriso esmorece um pouco a ver minha expressão.

— Amor... — Chamo com todo o carinho que tenho por ela — Por favor, pare.

Ela endurece o olhar e dá um passo para trás.

— O que você quer dizer Keren... — Ela começa acusatória — Não vê que faço isso por nós? Não está cansado de guerrear, de tentar controlar todo esse ódio?

Engulo em seco ante a sua voz, mas dou um passo à frente.

— Você não faz isso por nós meu amor — Digo com pesar — Sua gana por poder a está enlouquecendo...

— Pare... — Lantriah me interrompe, sussurrando de olhos fechados.

— Lembre-se dos dias em que você queria proteger essas pessoas... — Recomeço.

— Pare... — Suplica novamente com os olhos abertos e cheios de lágrimas.

Dói-me profundamente ver sua dor, mas chegamos a um ponto sem retorno. Os outros Deuses nos olham com tristeza, mas não se metem. Suponho que, no fundo, eles torcem para eu conseguir a fazer voltar a si.

— Lembre-se. — Volto a falar com a voz rachada — Lembre-se de quando você amava a vida e não a usava como armas — Peço.

— Pare! — Dessa vez ela grita e todo meu corpo é traspassado com seu poder.

Recuo alguns passos para trás, sem ar e caio de joelhos. Minha mão vai ao peito onde uma dor pulsa e se espalha devagar pelos membros. A respiração se torna rasa. Sinto-me afogando em meu próprio sangue e a olho perplexo. Chegamos a esse ponto então?  Suas joias turquesa, me encaram arregaladas.

Sangue começa a jorrar de meus lábios e não tenho como pará-los. Lantriah corre em minha direção desesperada e me segura nos braços.

— O que eu fiz? — Soluça e me aninha em seu peito — Darei um jeito! — afirma em meio as lágrimas.

Sinto seu poder me banhar, mas ele me atravessa.

— Não! — Ela urra — Porque não consigo reverter? — Pergunta para seus companheiros.

— Uma vez dada a vida... — Ouço a voz de Sorcer começar, hesitante — Nada pode devolvê-la. Não nesse ponto. Nem mesmo você.

Lantriah desvia o olhar de Sorcer e me encara com seus lindos olhos afundados em desespero. Em meio a sua dor e a minha, um dos poucos pensamentos que me abate é o de quanto um amor pode ser doloroso e mágico. Se pudesse voltar no tempo a amaria ainda mais, aproveitaria ainda mais. Cada momento.

— Me perdoe. — Ela pede e volta a soluçar me apertando forte.

Sinto a força começar a se esvair e acaricio seu rosto com carinho. Quero memorizar cada traço. Em outro momento saberei reconhece-la e poderei recomeçar de onde parei.

— Pare... com o que está fazendo! — Murmuro entre arquejos — Ame suas criações. Não as use.

Lantriah assente em meio as lágrimas e desce o rosto me acariciando com um leve beijo. Fecho os olhos e deixo a sensação de seus lábios nos meus, me acompanharem na escuridão.



***

Oi gente, tudo bem? O que acharam do prólogo? Espero que tenham gostado. A cada sexta vou tentar estar postando um capítulo(ou mais) de Deuses problemáticos alguns anos a frente, e desenvolvendo essa doidera 😂.  Não esqueçam de votar, por favor . Até a próxima!!

Fonte InerteOnde histórias criam vida. Descubra agora