Helóy
— Só mais um pouco baby... — Sussurro, suplicante.
Aspiro o ar por entre os lábios tentando controlar a tensão que se acumula em mim e giro a chave mais uma vez. Meu morris, ronca de uma forma positiva, mas volta a morrer.
— Mas que merda! — bato no painel cor de salmão do carro, deixando a minha paciência, ir para o espaço de vez.
Será que isso tudo pode piorar? Puxo meus cabelos e os amarro em um rabo de cavalo, pensando no que fazer. Eu devia ter feito a revisão interna, ao invés de investir na pintura, mas ele estava em um estado tão precário, que fiquei com medo de ser parada pela polícia. Agora eu estou parada às quatro da manhã, em uma estrada deserta e a meia hora de casa.
Tiro a mão da chave e encosto a cabeça no banco. Não tenho muito o que fazer, se não aguardar. Esse velho carro, já me deixou na mão em outras vezes e depois voltou a funcionar. O jeito é esperar.
Já pensei diversas vezes em vender essa antiguidade, mas me dói me livrar da única herança de Shorcha. A velha rabugenta, foi a última que me adotou e a única a tomar espaço, no meu já calejado, coração. Ela amava esse carro e deve estar se revirando no túmulo, só de me ouvir pensar em vender.
Desvio o olhar do retrovisor um pouco sujo de poeira e sou agraciada pelo belo nascer do sol, que espreita ainda tímido, atrás da colina esverdeada a minha esquerda. Trabalhar a essa hora tem suas vantagens às vezes. Suspiro encantada, com o pequeno showzinho que a manhã me dá e sinto-me acalmar um pouco.
A conversa com Aindam e toda essa estranha irritação, que me tomou ao falar com ele não me são comuns. A mais de quinze anos, eu luto para manter minha impetuosidade sob controle e até tenho obtido êxito, mas aí vem a droga do Aindam, com aquela voz grave e fala.
O infeliz devia sempre manter a boca fechada, assim ao menos eu só ia querer transar com ele e não o matar.
— O quê... que merda eu estou pensando? — Murmuro irritada, com o rumo dos meus pensamentos.
Eu nunca vou me envolver com outro Deus. Não desse jeito. Jamais. Balanço a cabeça, dispersando essas ideias e abaixo o vidro do carro. Ele emperra na descida, pelo menos umas duas vezes, antes de abaixar de vez, mas o ar frio ajuda a acalmar meu corpo e minha mente.
O verde incessante das colinas sempre me lembrou aspargos. É estranho, mas já me divertiu bastante quando criança. Aproveito os segundos de silêncio, que imperam sempre nas manhãs das áreas mais afastadas do centro. Trabalhar a mais de quarenta minutos de casa, não foi bem uma escolha, mas Dublin sempre vai proporcionar empregos e por mais que eu goste do meu sossego, dançar algumas vezes naquela boate, é um mal necessário agora.
O sono começa a pesar em minhas pálpebras e esfrego os olhos que queimam.
— Certo. É hora de mostrar que o velho da Shorcha, consegue ... — Aliso brevemente o painel, mesmo me sentindo idiota com a atitude — Só me leve para casa e eu juro que junto dinheiro para uma revisão mês que vem! — peço baixinho e giro a chave novamente.
O carro ronrona de forma promissora. Espero para ver se ele vai morrer, mas se mantém.
— Esse é o meu coroa! — comemoro, satisfeita e sigo pela estrada.
O percurso se divide entre pequenos chuviscos e sol fraquinho. Nada fora do comum por aqui. Você pode estar curtindo uma bela tarde de sol no parque e o tempo simplesmente se revoltar e começar a chover torrencialmente. É cômico, ver os estrangeiros xingando a Deus pelo tempo maluco da Irlanda. Fico tentada, a informar que não tenho nada a ver com o tempo instável do país. Não sempre.
Viro em uma pequena estrada de barro e sigo por alguns metros já sentindo meu corpo relaxar, ao avistar minha casa caindo aos pedaços. Está feia e acabada, mas é meu refúgio. Paro com o carro e saio, fechando a porta com um baque forte.
Começa a chuviscar novamente e corro para a varanda de ipê, desbotada. A estrutura range um pouco sob meus pés, mas resiste. As estrondosas latidas de Salomão, é a primeira coisa que identifico atrás da porta branca. Toda a casa de dois andares é revestida de tijolos avermelhados e olhando de perto agora, lembro-me que uma dose de tinta, até que viria a calhar.
Abro a porta, e o calor de casa é acolhedor, mas Salomão pula em mim e desfere lambidas em meu rosto, como se eu fosse o melhor dos pratos. Acaricio sua pelagem cinza e apalpo sua barriga, percebendo que enfim, meu grandão está engordando. Quando o achei abandonado na estrada, nem precisei abrir contato com ele, para saber das atrocidades cometidas ao pobre animal. Estavam descritas no corpo e nos olhos dele.
Salomão é uma mistura de pastor alemão, com lobo e os antigos donos, provavelmente não previram, que ele cresceria mais que o desejado. Filhos da puta irresponsáveis!
Sua calda balança frenética e ele me olha daquele jeito sério, que faz sempre quando quer que eu o ouça.
Abro minha mente para o contato, como aprendi a alguns anos. Esse foi um truque necessário, pois toda vez que saia de casa, era uma explosão de pensamentos vindos de tudo que era animal.
Não dava para manter a sanidade daquele jeito, por isso travei em mim mesma, uma linha. Eu só os ouço agora, quando me libero a isso.
Passo a mão na cabeça de Salomão mais uma vez e abro contato.
— E aí meu lindo? — pergunto.
"Está com cheiro de cigarro de novo Ló..." Ouço sua repreenda, sem ouvir de verdade.
Sempre foi estranho, conseguir ouvir os pensamentos e não ouvir uma voz. É mais como uma onda de emoções.
— São os engravatados do clube. Os caras fumam demais. — Lhe respondo.
— Sua gata desgraçada! Vem aqui que eu vou queimar cada fio preto seu! — Ouço a voz rouca de Sofi ladrar, no andar de cima.
Encolho-me ante a ideia de ter que acalmar a Sofi, logo agora que cheguei em casa.
"A Natasha fez de novo Ló. Eu falei pra ela que era uma má ideia, mas você sabe como ela é..." Salomão me explica, culpado.
Natasha sempre fez questão de mostrar o quanto não gosta de Sofi, mas em defesa da minha gata, a Sofi chegou depois dela. As duas vivem em pé de guerra e aparentemente esse dia só tem a piorar.
— Certo... eu vou ver se acalmo a fera. Eva e Elizabeth estão bem? — Pergunto sobre minha outra gata e minha pequena ovelha que resgatei de um atropelamento.
"Sim. As duas estão dormindo na cozinha. Eva adora reclamar do cheiro da ovelhinha, mas não deixa de dormir em sua barriga" Ele responde, bem-humorado.
Sorrio com sua resposta e me encaminho para o andar de cima. A escada de madeira geme um pouco em certos pontos, mas não creio que seja prioridade na minha lista de reformas.
Desvio de um buraco por puro costume, porque a lâmpada que devia estar iluminando a subida, já queimou tem cinco meses. Certo... talvez eu deva por isso na lista de prioridades.
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Fonte Inerte
FantasyHelóy luta há muito tempo para se manter pacífica. Dona de uma divindade que recebera ainda muito cedo, ela aprendeu amargamente o quanto pode ser perigosa. Trabalhando em uma boate em Dublin, ela tenta conciliar uma casa que só pede reformas, seus...