Hoje...
Helóy
— Hoje será um dia daqueles... — Murmuro insatisfeita.
Podem passar meses, anos ou até mesmo dias, mas o filho da mãe sempre volta. Olho resignada para boate em que danço a meses. Tento me concentrar em outros rostos, que não seja de Aindam.
Vejo o velho senhor que tem sempre uma estranha "coceira" na virilha quando uma das meninas dança. Nojento.
Os engravatados que, aparentemente acham esse lugar uma boa forma de fechar o dia. Umas mulheres que sempre vem e por fim volto ao rosto que me acompanha por anos.
O tão renomado e conhecido advogado Aindam Lukan, sempre dá um jeito de estar onde estou, sempre espreitando ou me ferrando de alguma forma. Ele sabe o que sou, e eu sei o que ele é.
Nunca chegamos a trocar uma palavra sequer nesses anos, mas sei o que ele tem feito para me prejudicar, só ainda não sei o porquê.Sinto Jacques se aproximar antes mesmo dele estar ao meu lado. O olho já sabendo ser a minha vez.
— Mesa um, quinze minutos. — Ele fala e digita algo em seu celular.
— Beleza. — Respondo suspirando e tirando o robe.Olho novamente para o fio dental preto que mal cobre minha parte íntima e peitos. Balanço a cabeça para a falta de criatividade dessa gente, mas que se dane, meu saldo devedor não esperará eles acharem uma fantasia melhor. Hora de trabalhar.
Direciono-me pela parte traseira do bar e meus pés já rechaçam imediatamente os saltos. Odeio esses sapatos infernais. A melhor parte do meu dia é quando ponho meus sapatos fofinhos e confortáveis.
Passo pelas mesas pouco iluminadas, já com algumas meninas dançando e ignoro o olhar de alguns clientes estrangeiros. A maioria deles não sabe que não podemos oferecer sexo por dinheiro na boate.
Dançar com a parte íntima na cara do cliente pode, mas transar não. Não entendo a lógica, mas o que importa realmente, é que os estrangeiros nem sempre sabem disso e é um saco tentar explicar. Por isso sempre corro deles.
Estanco a uns dez passos da mesa já sentindo meu gênio aflorar. Nem preciso olhar para saber que o filho da puta requisitou minha primeira dança. Eu devia ter desconfiado. Respiro fundo controlando a irritação e volto a andar.
Paro de frente para ele, que domina o ambiente de pernas abertas e braços apoiados nas costas do sofá marrom escuro. Aindam me encara com um misto de diversão e desafio. Avalio bem o terno de corte caro e acinzentado que ele usa e mantenho a clareza de pensamento. Se o desgraçado quer uma dança, ele terá uma dança.
Deixo-me levar pela música e em alguns momentos acabo olhando para seus olhos verdes quase incandescentes.
Tenho que admitir, o cara é lindo. A pele clara está bem barbeada, o queixo forte levemente inclinado para baixo enquanto ele me analisa com demora, o coloca em uma daquelas poses, que conduzidas pelos homens certos, molha qualquer calcinha. Chega a ser irritante!
Seu cabelo ruivo, de um tom tão vivo que se destaca onde estiver, está cortado na altura das orelhas e se rebela em diversos momentos, deixando alguns cachos grossos pela testa.
De altura mediana e corpo de quem perde um tempo na academia, ele seria um pacote perfeito, se não estivesse tentado tornar minha vida um inferno. Tenho quase certeza de que sua perseguição infinita tem a ver com aquilo, mas como tudo que está envolto em minha condição é ainda muito desconhecido para mim, acabo incessantemente voltando à estaca zero.
Sempre me pergunto porque ainda não falei com ele, porque ainda não o confrontei. Sei que não é desses conflitos sem valor, sem motivo.
Eu, na verdade, preciso enfrenta-lo, mas algo em falar com outro igual a mim, tornará tudo isso ainda mais real e me arrepio até os ossos só de pensar nisso.
A música já está quase no fim e enquanto me preparo para acabar sinto um leve puxar em minha mente. Um toque tão delicado e poderoso que passaria despercebido por qualquer um, mas não por mim.
Algo íntimo e de uma calma fria se agita como que pedindo para sair. Dessa vez, me permito desfrutar um pouco dessa bizarrice toda. Abaixo-me dançando lentamente o olhando nos olhos e com tranquilidade aproximo minha boca de seu ouvido. Aspiro as notas de sândalo de seu perfume e o cheiro de algo mais, algo só dele.
Reconheço a estranha energia que meu corpo exala e a forço a expulsar qualquer influência que seja de Aindam da minha mente. Ele é repelido de forma tão avassaladora e rápida que tomo uns segundos para me recuperar do susto.
Qualquer um que olhe de longe pensará que estamos em algum tipo de paquera pré-sexo.
— Nunca mais tente isso. — Digo com um sorriso cínico que aprendi ao longo dos anos.
Absorvo brevemente os olhos arregalados e pupilas dilatadas de Aindam. Aposto que o filho da mãe não conhece muitos que possam fazer isso. Levanto, gingando os quadris e deixando-os a poucos centímetros de seu rosto. Uma parte de mim se envergonha com a afronta infantil, mas outra bem mais divertida, se delicia. Apresso-me para o vestiário.
Droga. Odeio quando me deixo levar pelo poder, mas me irritou profundamente saber que ele julgava poder me controlar e me irritou ainda mais o quão facilmente minha mente rejeitou seu comando. Ótimo, agora nem sentido mais eu faço.
O que estou esperando de mim mesma, afinal? Nada em minha vida já foi perto do normal.
A confusão de sensações misturadas a minha raiva, traz a imagem de mim aos sete anos, quando estava no quarto comunitário, deitada tranquilamente. Lembro-me com tanta vivacidade que chega a ser nauseante:"Primeiro senti um leve sopro na testa, algo como um carinho e de repente minha mente e meu corpo tomaram conhecimento de um poder desconhecido e desproporcional. Minha pele formigava e todos os meus sentidos diziam que eu devia fazer algo. Qualquer coisa.
Uma voz tranquila e suave sussurrou em meus ouvidos com veemência:— Estás concebida a Deusa da Terra, o fardo será grande, mas é equivalente à sua força de vontade pequenina...
A voz veio e se foi me deixando desorientada. Tinham tantas informações rodando em minha mente, que me via tentando me concentrar só em respirar.
Lembro-me que levantei devagar e que no momento em que pisei no chão as mais variadas flores e raízes nasceram ao meu redor. Gritei como uma louca, mas as flores só continuaram a crescer.
As crianças começaram a acordar assustadas e, nessa altura se formou a bagunça. Entre a correria e a gritaria descobri que quanto mais nervosa eu ficava, mais loucuras eu conseguia fazer. Então traguei o ar, pelo menos umas vinte vezes até me acalmar e tudo simplesmente parou, só deixando o cheiro de flores e campina no ar. Olhei tudo aquilo, dividida entre sorrir e correr de lá.
O momento passou, mas ninguém desconfiou da menina no canto do quarto com cara de paisagem, que fervilhava por dentro. Aquele foi um evento em que ninguém soube explicar, então evitavam falar."
Desde aquele dia aprendi que teria que ter muito cuidado com minhas emoções, pois aparentemente o combo divindade não vem com manual para controlar tudo isso.
Um tempo depois fui transferida para outro orfanato e a vida seguiu como devia ser, tirando o fato que eu era um ser que podia criar e dar vida como bem-quisesse, que falava com animais e que tinha uma estranha conexão com à terra. Super normal.
Passei a sentir tudo a minha volta, tanto que tinha dias em que fechava os olhos e andava pelo orfanato bancando a cega. Cara... eu era estranha.
Será que eles não previram que a toda fodona Deusa da terra ia ganhar dinheiro tirando a roupa numa boate medíocre? Que ridículo!
Balanço a cabeça tentando tirar as lembranças e os pensamentos indesejados e me visto para sair. Maldito Aindam e tudo que representa, essa merda toda dele estar em meu encalço, acaba hoje! Se ele não me ouvir e parar com isso, descobrirá de uma vez por todas o quanto me irritar é perigoso.
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Fonte Inerte
FantasyHelóy luta há muito tempo para se manter pacífica. Dona de uma divindade que recebera ainda muito cedo, ela aprendeu amargamente o quanto pode ser perigosa. Trabalhando em uma boate em Dublin, ela tenta conciliar uma casa que só pede reformas, seus...