Capítulo um

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Luzes e mais luzes. Durante alguns minutos dentro daquele lugar fechado com o mínimo de ventilação possível, pude sentir meu corpo e mente me repudiarem por centenas de formas diferentes, a música era quase tão entorpecente quanto o arranhar de uma faca sendo afiada, e as pessoas pareciam ter tido suas almas elevadas, somente seus corpos físicos estavam ali, mentiria se dissesse que estava tão diferente dos demais, ao contrário de meu irmão, que parecia estar a dois passos de um colapso

- ei! - mercúrio segurou meu rosto contra o flash de seu celular, iluminando meus olhos - sua pupila está dilatada

- certo, e daí? - tirei suas mão do meu rosto, e pude ver pela silhueta da luz sua expressão descontente

- acho melhor irmos embora

- eu discordo- era quase impossível entender o que falávamos um pro o outro, tentava usar disso para sair daquele diálogo inevitável

- é uma pena que precise de mim para irmos embora não é, irmãozinho?

Quase que um lesto de segundos, mercúrio me puxou através das inúmeras pessoas presentes, somente parando quando chegamos aos fundos do lugar

- anda- ele diz enquanto encarava meus rosto esperando que fizesse o que pediu

- você é insuportável

- insuportável ou responsável?

Ele dá um breve sorriso que respondo com um revirar de olhos. Depois de um profundo suspiro na tentativa de resgatar alguma consciência do que estava fazendo, senti meu corpo se deturpar novamente, dessa vez não era por algum efeito colateral de substâncias ilícitas, as mãos de mercúrio apertaram mais firmemente as minhas, se minha mente estivesse transbordando sanidade como durantes as horas que estive dentro de um clube extremamente duvidoso, teria as soltado, porém, isso resultaria em dores de cabeça e um sermão, definitivamente essas eram as últimas coisas que gostaria.

Em um período de tempo além da compreensão, nossas células corporais se restauraram sob chão coberto por um assoalho de madeira escuro, estávamos no segundo andar da casa, mais especificamente, meu quarto

- está tudo bem? -pergunto ao perceber sua dificuldade ao levantar

- sim, acho que nunca vou me acostumar cem por cento com isso

- toma um banho gelado, ajuda a alinhar suas moléculas de novo

Apoiando-se na mesinha ao canto, mercúrio se levantou e saiu em seguida do cômodo, assim que a porta se fechou, joguei meu resto de matéria física existente na cama, todas as vezes que usava tais habilidades parecia perder mais da metade dos meus sentidos, tudo parece ficar preso no limbo que atravesso ao concentrar tudo em um único ponto destinal, poderia descrever este como um dos inumeráveis fardos.

Com o pouco de foco que me restava, o transferi para conseguir fechar os olhos e me perder em outro limbo, desta vez o que me proporciona paraíso de sonhos e um alívio existencial.

***

Quando se está em algum veículo tudo se torna bastante perceptível, tudo do outro lado do acrílico temperado apesar de passar rápido pelos olhos, diminui sua velocidade para percepção. Gostaria de saber como toda a extensão de terra era antes do presente, em como era o sentimento de paz antes de tudo deteriorar, os traços que poderiam ser vistos do veículo e em como a vida se divergia.

Todos que ocupavam aquela cidade repleta pelas mais diversas formas de tecnologias eram fruto do que restou do antes.

A cidade dos anjos era uma das poucas cidades que restaram desde a ruína, explicitamente falando há oitenta e nove anos atrás tudo foi afetado pela maior explosão econômica vista, a busca natural e gananciosa humana fez grandes empresas se tornarem uma potência global, seus monopólios eram maiores que quaisquer outros meios, com isso o estado acabou perdendo totalmente o controle sobre o todo, era a fórmula perfeita para um desastre civil. O pavio que queimava até a pólvora durante esse tempo finalmente explodiu, e o império não só governamental afogou em guerras civis. Assim como todas as histórias que ouvimos nas deturpadas aulas de história, a sociedade se dividiu, pelo menos as poucas que restaram, a que eu me encontrava foi uma das primeiras a se erguerem, a batizaram de cidade dos anjos pelas luzes brancas que contrastam com as estrelas à noite, dava para serem vistas de qualquer lugar dali, mas com o tempo ninguém ao menos lembrava de seu significado e da paisagem que se formava. Nossos fundadores eram os mais inteligentes cientistas da época, o que explica e resulta na avançada medicina e tecnologia que temos, eu odiava ouvir isso, mesmo depois da síndrome de grandeza ter quase acabado com o mundo, os maus hábitos não morriam, a glorificação da noventa por cento da cidade continuava intacta, pecados capitais realmente podem ser hereditários. Apesar de avanços significativos e que mereciam admiração, como a cura de doenças -antes- crônicas e mortíferas, algo saiu dos eixos, e eu particularmente era uma das rodas desconhecidas fora dos trilhos. Durante um período de desenvolvimento de uma solução que aumentaria sentidos naturais humanos, sobreviventes vagantes pegos na fronteira da cidade -os chamados forasteiros- eram usados para teste com a promessa de caso bem sucedido, teriam um lugar para chamar de seu e dignidade para seus filhos. O que aconteceu não foi exatamente isso, alguns acabaram morrendo por altos efeitos colaterais e o projeto acabou sendo cancelado sem vestígio de suas perdas, os demais forasteiros ganharam um pequeno lado da cidade em troca do silêncio, todos eles poderiam conviver em sociedade, bastava apenas ignorar como chegaram ali. Penso nisso até hoje, a promessa de dignidade e tudo que propuseram, era óbvio a aceitação, quando não se tem nada, qualquer intervenção compra sua liberdade.

Nascentes do poderOnde histórias criam vida. Descubra agora