Capítulo 1

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Dez. Dez anos inteiros esperando por esse momento, por esse reencontro. Bem, não era exatamente um reencontro, mas aproveitei a oportunidade para fazer dessa consulta uma forma de rever meu melhor amigo de infância e adolescência, o qual, depois de uma briga feia sobre algo que agora vejo sendo totalmente imaturo, nunca mais vi.

Meus dedos já estavam em carne viva, e o tic-tac do relógio me fazia querer arrancar meus cabelos. É, eu realmente estava precisando daquela consulta, ou minha ansiedade sairia do controle muito em breve, considerando que esses eram sintomas leves e comuns.

Desde o momento em que vi o nome do meu melhor amigo (ou talvez ex-melhor amigo) enquanto pesquisava profissionais de psicologia mais indicados da região, comecei a pensar como aquilo tinha acontecido. E, sim, isso apenas contribuiu para piorar minha ansiedade.

É estranho pensar em Horin formado em psicologia, quando desde pequeno ele falava em ser médico veterinário, sem nunca ter mencionado ou considerado outra opção. É, dez anos mudam as pessoas. No fundo, ainda tenho certa esperança de encontrar meu amigo de longa data, apenas um pouco diferente fisicamente talvez. Mas sei que isso é um pensamento extremamente tosco. Como quero que alguém permaneça igual depois de  uma década, quando eu mesma mudei tanto?

Acho que se minha eu do passado desse um jeito de ver minha eu de hoje, ela ficaria atônita e certamente se perguntaria "o que, diabos, aconteceu?". Sim, ela falaria exatamente desse modo, porque houve uma fase da minha pré-adolescência em que eu estava viciada na palavra diabo. Eu era estranha.

Ok, mas por que ela ficaria tão assustada? Porque eu simplesmente mudei todos os planos que tinha e, hoje em dia, ao invés de uma jornalista que viaja o mundo trazendo manchetes e informações, com uma linda família e tudo o mais, sou uma advogada desempregada e minha única parceria no dia a dia é um gato malhado com cara de deboche. Ah, e é claro, minha amiguinha ansiedade.

Olho novamente para o relógio de vidro preto e fosco, os ponteiros brancos se destacando naquele fundo de forma harmônica, como se um completasse o outro. Em geral, o que vi do ambiente até agora parece se complementar, o que faz minha espera agradável, principalmente quando já fazem quinze minutos que estou esperando e ainda faltam dez para o horário real da consulta. Sempre tive medo de chegar atrasada.

Às vezes me levanto um pouco e dou uma voltinha, analisando melhor cada detalhe das paredes brancas (mas não naquele tom que nos cega), das poltronas de couro cinza grafite que cheiram a algo semelhante a pinho e neve, do balcão da recepção (agora vazio), preto com detalhes em branco e cinza que formam um lindo beija-flor, e nas flores violetas que despontam de alguns vasos espelhados, enfeitando todo o local.

A porta do escritório se abre com um barulho alto, quebrando o longo silêncio que se instalara na sala de espera, me fazendo quase ter um ataque cardíaco com o susto. Tudo bem, talvez eu tenha exagerado, mas o susto foi realmente grande.

Um homem calvo, de sobrancelhas já tomadas de cinza e olhos claros e cansados, vestido em uma camisa social listrada com dois tons de azul e uma gravata amarela que não combinava em nada com o resto do visual, saiu da sala com um sorriso. Ele agradeceu a alguém atrás de si, me deu um aceno e saiu porta afora, para o dia triste e chuvoso e para a loucura do trânsito da cidade grande.

-Lia Houstron? –Senti a voz dele falhar ao falar meu sobrenome, como se realmente se lembrasse de mim. Como se lembrasse de nós. Ele limpou a garganta antes de continuar, a voz grossa e rouca fazendo meus pelos da nuca se eriçarem- Gostaria de me acompanhar?

Criei coragem suficiente para tirar meu olhar das violetas (que haviam se tornado, de repente, tão interessantes) e olhar para ele. Para ver meu passado e meu presente se chocarem.

Horin continuava lindo. Lindo como o fogo. Porque se tinha algo que poderia representar Horin, era o fogo. Ao menos era assim há dez anos.

Mas bastou apenas um vislumbre daqueles olhos castanhos e travessos para eu ter certeza de que ao menos uma parte do meu melhor amigo ainda estava lá. Seu sorriso ao me ver era tão brilhante e sincero que fez meu coração se acalmar, como há tempos ninguém fazia. Como se apenas aquele simples gesto fosse capaz de trazer pura paz.

Acho que fiquei perdida naquele olhar e sorriso, nas lembranças ali contidas, que fiz Horin se sentir um pouco constrangido, mexendo no cabelo castanho e sedoso de forma nervosa, os caachos ondulando com o movimento, chamando agora minha atenção para os novos músculos visíveis por sua camiseta verde e justa. Isso certamente era novo.

Forcei-me a dar um sorriso, que talvez tenha parecido um pouco maníaco, para evitar começar a babar no carpete bege que cobria o piso de toda a sala.

-Pode entrar. Seja bem vinda, Lia.

Talvez minha mente tenha exagerado um pouco na interpretação, mas a forma como ele disse meu nome, aquela voz rouca atingindo diretamente meu coração, soou como um elogio. O que estava acontecendo comigo?

Gaguejei qualquer coisa como resposta e tropecei para dentro da sala, minhas pernas subitamente transformadas em gelatina. Como eu odiava ficar nervosa e não ter controle sobre minhas ações. 

Horin estendeu o braço musculoso em direção a uma poltrona azul marinha, no canto direito do ambiente. Entendi minha deixa e me dirigi à poltrona com ele ao meu encalço. Sentei-me cruzando as pernas, os dentes rangendo com meu nervosismo e a ansiedade que eu tentava controlar. Era realmente desconcertante ter Horin me vendo naquele estado.

-Nossa, estou surpreso por vê-la aqui –Ele passa novamente a mão pelos cabelos, provavelmente tão nervoso e desconcertado quanto eu. Me sinto melhor ao constatar isso.- Sabe, quando ocorreu o... hum, incidente, achei que nunca mais a veria. –Seus olhos brilharam com tristeza e nostalgia, a mente provavelmente viajando para aquele dia. Aquela briga.


Violetas de FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora