Epílogo

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Assim que fizemos as pazes, seguimos colocando a conversa em dia, contando sobre como chegamos na situação em que nos encontramos hoje, entre outras histórias bizarras que até então não tínhamos com quem compartilhar. Eu me sentia extremamente leve, a chuva que ainda caía do lado de fora não era nada comparado ao brilho em meu sorriso e olhos.

Poderia não ter sido exatamente a consulta pela qual eu estava ali, mas certamente foi muito mais eficiente do que qualquer uma que eu poderia imaginar ou pagar. E tenho certeza de que Horin se sentia tão bem quanto eu com nossas pazes. Com o simples fato de nos reencontrarmos.

Seu sorriso estava estonteante quando ele me levou até a porta ao avisar que nosso tempo, infelizmente, tinha acabado. Me senti murchar um pouco no momento, pensando que estava bom demais para durar para sempre. Quem sabe eu pagaria por mais algumas consultas nos próximos meses. 

Horin abre a porta do consultório e vejo novamente a recepção, agora com um aspecto tão frio e calculista que aumenta meu desânimo, uma mulher de meia-idade e de expressão séria sentada atrás do balcão. Eu sigo pela porta e vejo que não há mais ninguém ali, ninguém para testemunhar quando ele segura meu braço, seu aperto forte e delicado ao mesmo tempo, e me vira para o encarar.

Seus olhos brilham com o costumeiro fogo quando estou de frente para ele. Sua boca quase treme com o nervosismo, então ele pergunta:

                                                                                       <----->

Quando Lia sai pela porta, o brilho murchando ao entrar na recepção e então seguir em frente, sinto que parte do meu coração está indo junto com ela. Sem pensar agarro seu braço, tomando cuidado para não machucar, mas tentando manter minha mão o mais firme possível para não tremer com a ansiedade.

A última hora fora maravilhosa, a conversa e as risadas, o sorriso verdadeiro e maravilhoso no rosto delicado dela... coisas simples e que me fizeram sentir um terrível arrependimento por não ter tentado mais, por não ter ido atrás dela e lutado por aquela amizade. Lutado por aquela garota que fora dona da maior parte do meu coração por anos.

Quando eu a vira na porta do meu consultório há uma hora atrás, foi como se minha mente tivesse decidido dar tela azul e quase me vi perdido novamente, como fiquei durante alguns meses após nossa briga. Mas bastou um vislumbre da tristeza e do nervosismo naqueles olhos para que tudo clareasse.

Eu encarei aqueles olhos, voltando para o presente. Os olhos mais lindos do mundo, o violeta da íris junto com o preto da pupila me levando em uma viagem pelo universo. Ela sempre teve esse poder sobre mim, bastava um olhar para me desarmar, um maldito olhar e eu entregaria a ela tudo o que pedisse. Temo que Lia nunca tenha descoberto isso.

Sinto meus lábios tremerem quando abro a boca para falar:

-Ei, Lia, estaria a fim de sair um dia desses? –Quase a abraço quando o sorriso volta majestoso para seu rosto e ela responde:

-O senhor não gostaria de tomar uma xícara de café?

Rio alto com a referência ao nosso passatempo favorito na juventude e o tom que ela assume para imitar Dona Florinda.

-Não seria muito incomodo para a senhora?

-Claro que não, mas entre.

Nós dois caímos na gargalhada, algo que acredito que ambos não fazíamos a tempos, ao menos não da forma livre e verdadeira que agora fazemos. Da forma como amigos costumam fazer. Quando enfim recobramos a compostura, e percebo que meu próximo cliente já está há espera, falo:

-Como já possui meu contato, ligue para combinarmos um dia, Violeta de Fogo.

Lia sorri com a menção ao seu antigo apelido que ela costumava odiar, pois eu o usava para incomodá-la quando estava zangada, já que acontecia com frequência e parecia que seus olhos violetas estavam prestes a pegar fogo com sua raiva.

-Pode deixar, Cachinhos dourados –Eu reviro os olhos diante do meu apelido idiota, mas fico feliz com a recordação.

Ela não fala mais nada conforme acena para o homem sentado na poltrona de espera e segue para a porta e o mundo afora, apenas me dando um breve olhar de despedida enquanto desaparece novamente. 

                                                                                              <---->

Não sei bem ao certo o que estou fazendo, mas assim que fecho a porta da recepção e sou recebida pelo ar abafado e pela chuva, um sentimento toma conta de mim e mal percebo quando abro novamente a porta de vidro e entro correndo na direção de Horin, quase escorregando no processo. 

Ainda estou incapaz de pensar quando ele me olha com espanto enquanto jogo meus braços sobre seus ombros e o beijo com força. Por um momento volto a mim e sinto o medo de não ser correspondida e estragar tudo o que eu tinha acabado de reconstruir com ele. Mas então a surpresa de Horin se vai e sinto que ele não tem dúvida alguma do que está fazendo quando segura com uma mão em minha cintura, a outra em minha nuca e me beija.

O beijo começa leve e tímido, mas então sentimentos há tantos anos guardados começam a fugir de suas amarras e não existe nada além de nós dois. Não existe consultório, não existe um paciente esperando na sala, ou uma recepcionista mal-humorada, não existe nada nem ninguém além de Horin. Não existem o medo e a ansiedade. Não existe se quer o tempo, apenas esse momento, esse beijo. Somos início, meio e fim. Somos o suspiro de algo grandioso, o tudo e o nada. 

Me sinto perdida, mas também sinto que nunca tive tanta certeza da vida quanto agora, como se inúmeras peças perdidas magicamente se encaixassem no quebra-cabeça do meu coração e mente. Me sinto cheia e vazia. Me sinto um Deus, ao mesmo tempo que me sinto insignificante para o mundo. 

Não sei quanto tempo se passa, pois o momento estava além de qualquer contagem ou marcação, mas assim que nos separamos, ambos relutantes e ofegantes, ficamos por alguns minutos encarando um ao outro, sem acreditar no que acabara de acontecer. Me pergunto se ele sentiu as mesmas coisas que eu. Pelo brilho intenso em seu olhar, tenho certeza de que sim.

Poderíamos ficar eternamente daquele jeito, apenas admirando o outro. Observando os traços delineados, as pequenas falhas nas sobrancelhas grossas, o formato sensual da sua boca, agora entreaberta... Mas o cliente de Horin tosse incomodado nos tirando do transe. Sinto minhas bochechas queimarem ao mesmo tempo que vejo as do homem em minha frente ficarem vemelhas. 

Sorrio com isso e me aproximo de seu ouvido:

-Amanhã. Oito horas no restaurante da quinta avenida. -Posso jurar que um arrepio o percorre quando enfim me afasto dele. 

Lanço um olhar envergonhado para o cliente, que ainda aguardava na poltrona, enquanto me dirijo para a porta de vidro novamente. Assim que a fecho posso jurar que ouço uma voz grossa falando:

-Belo showzinho, Horin. 

Violetas de FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora