Prólogo

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Há muito e muito tempo, numa terra localizada na fronteira de quatro países – Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai -, estas coisas aconteceram. Algumas pessoas, que me são queridas e com quem convivo, dizem que essas lembranças, e consequentemente os escritos que desenvolvi na época sobre esses acontecimentos, deviam ser apagados da memória, queimados totalmente em uma grande fogueira, junto com outras lembranças de coisas horríveis que o homem branco fez.

Mas esses relatos têm sua razão de serem feitos. Eles falam dos últimos dias de reinos incrustados na floresta, cerrados, montanhas e pantanal, no sertão do mundo, em território inóspito ao europeu invasor. Essa história fala de povos que habitavam e eram senhores do Pantanal, território onde a Grande Guerra ocorreu. Este é o relato de um genocídio e da resistência de povos e de heróis desconhecidos.

Hoje está um dia quente. Até o calçamento das ruas parece emanar calor. Tudo indica que teremos chuva mais tarde. Neste local onde me encontro, no segundo andar, a janela de vidro me dá acesso a visão da rua lá embaixo onde as cores, sons e agitação do novo é contrastada com o antigo, lento e embaçado. Um plec, plec sonolento dos animais junto ao moderno bonde Ferreas. Ainda há lugar para as carruagens, penso.

Me lembro bem dos tempos em que só havia as carruagens. Foi em uma delas que me dirigi, em 1864, à casa do Barão de Vassoura, pai da Senhorita Cristina, aquela que viria a ser minha esposa ainda naquele ano. Foi um bom ano aquele. Éramos tão jovens! Havia tantos sonhos! Mas tudo se precipitou e pouco pude aproveitar do amor quase juvenil que nutria por ela e ela por mim.

Recordo-me, com certo encanto, da época em que ainda havia um rei nessa terra. O segundo e último rei que o Brasil conheceu: Dom Pedro II, amigo íntimo de meu pai, e uma pessoa que sempre admirei muito. Agora sou um velho e estou de volta ao lugar onde nasci. Apoiei o rei até os seus últimos momentos no trono. E depois do golpe - porque eu considerei um golpe - que derrubou a monarquia do Brasil e o exilou, mantive correspondência com ele por dez anos.

Penso que Deus tinha um plano para minha vida em tudo que vivi, presenciei e ouvi. Eu tinha de escrever essa e outras histórias. Ou, pelo menos, contá-las a outros para que eles as escrevessem. Talvez eu não consiga chegar ao fim desses relatos. Já estou velho e cansado. Às vezes me sinto só, ainda que saiba que não estou sozinho.

As lembranças sim, me atormentam dia e noite: as vidas ceifadas precocemente, as famílias das quais não sobrou ninguém para contar a história dos seus antepassados... Há tanta ruindade no mundo!

É por isso, acho, que estou aqui. Para dar voz a eles. Vi muita coisa. Mas ouvi ainda mais. E agora as imagens dançam em minha cabeça. Uma mistura de matas fechadas, capões, pântanos, montanhas e a serra. Tudo tão vivo!

O calor do Rio de Janeiro é intenso, e isso só faz ficar mais nítido, nas minhas lembranças, todas as provações passadas. O frio, as enchentes, os incêndios, a doença maldita, as perseguições, as batalhas e... as mortes.

As mortes... Essas, em vários momentos, foram consideradas um alívio. A morte foi nossa companheira em todo aquele tempo. A companheira mais íntima, que nos visitou quase todos os dias daquela retirada do país inimigo.

Sente-se aí, vou contar a história de pessoas que precisam ser lembradas. Espero, em Deus, conseguir escrevê-la, dando-a toda a notoriedade que ela exige. E te peço: nunca as esqueça.


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Filhos do PantanalOnde histórias criam vida. Descubra agora