1. Povo Eyiguayegi - os índios cavaleiros (parte a)

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Essa história começa em um dia de inverno, nas planícies pantanosas e alagadas dos territórios fronteiriços à serra de Bodoquena, território do povo Eyiguayegi. Hoje esse local é denominado Mato Grosso do Sul. Mas não naquela época. Naquela época chamávamos tudo aquilo de sertão. Um lugar de entre rios que na época das cheias transbordavam em todas as suas margens. Um território desconhecido e inóspito a nós, os brancos, mas não para o povo de Nagalageti.

***

A neblina era intensa quando os guerreiros da etnia Eyiguayegi cercaram e encurralaram um grupo de soldados paraguaios no terreno encharcado, na baixada próxima ao rio. Os homens Eyiguayegi conduziam seus cavalos abaixados, com as pernas recostadas no lombo nu do animal, sem estribos ou selas, segurando com uma das mãos a crina, enquanto com a outra manuseavam a lança. O brado dos guerreiros ecoou pela planície, acompanhado do barulho dos cascos dos cavalos na grama embarreada pela água das últimas inundações dos rios.

Em um agrupamento de palmeiras Carandá, comuns aos terrenos pantanosos, ocultos na neblina e vegetação densa, Dinoyé e seu filho Nagalageti observavam o confronto. Em cavalos grandes e fortes, tinham nas mãos as lanças, nas costas os arcos e flechas, na cintura facões extremamente afiados.

A neblina não demoraria a ceder, pois o sol elevava-se no horizonte, mas naquele momento a visão dos dois grupos estava prejudicada. Dinoyé iria até os outros e se certificaria do que realmente estava acontecendo, mas aguardava o instante exato. Era a primeira vez que o filho participava de um enfrentamento como esse, e apesar de ter sido treinado desde a infância para isso, o chefe tribal não queria expô-lo ao perigo de forma desnecessária.

Nagalageti tinha quinze anos e era o filho único de Dinoyé, o grande chefe daqueles territórios. Como o pai, o garoto era moreno com a pele avermelhada, queimada pelo sol e tinha tatuagens. Uma série de traçados e desenhos que ocupavam quase que o corpo todo. A etnia Eyiguayegi era marcada por suas tatuagens.

O grupo de forasteiros, que agora estava cercado, fora pego de surpresa enquanto passava pelo território Eyiguayegi, em direção ao outro lado do rio que já não era mais tão caudaloso como em meses anteriores. Os homens não pareciam estarem em uma jornada de caça. As roupas e armas que usavam indicavam serem soldados de guerra. De qualquer forma, tudo indicava que não levaram a sério as histórias, quase lendárias, do povo tido como sendo o mais cruel conhecido, daquele imenso território: os índios cavaleiros.

Dinoyé ensinara ao filho que nenhuma etnia, ou um grupo de guerreiros deveria ser subestimado, mas naquele dia e momento, o grupo meio oculto pela neblina, não parecia estar preparado para o confronto, pois eles se jogaram no chão em situação de aparente súplica. Dinoyé não entendia o que eles faziam ali, no território do seu povo se não estavam dispostos a guerrear.

De repente, o líder do povo Eyiguayegi, que tinha como território os vales circundantes da Serra de Bodoquena e a própria Serra, viu os homens se reagrupando e reagindo aos gritos de comando do mais velho deles.

Ainda que, minutos antes parecessem não preparados para lutar, tudo indicava que agora eles reagiam, e Dinoyé percebeu que chegara o momento de avançar. Se retesou assumindo uma posição ereta e apertou a perna no lombo de seu cavalo, enquanto observava que Nagalageti fazia o mesmo. Precisava confiar no treinamento que dera ao filho se alguma coisa desse errado no encontro próximo.

A organização social desse povo era muito peculiar, pois o grande chefe, na maioria das vezes, tinha somente um filho de sangue puro. Isso se dava ao fato de que suas mulheres, as nobres, geralmente, só se permitiam engravidar uma vez na vida e esse filho era concebido, quase sempre, próximo ao fim do seu período fértil.

Assim, Nagalageti, o filho de Dinoyé, era precioso demais para o seu grupo familiar e aldeia. Com isso, o pai se esmerava na sua proteção. Na verdade, ele queria poupar o filho, mas sabia que ele precisava provar o seu valor como guerreiro. E aquele poderia ser o momento.

— Está pronto, filho? — disse encarando o garoto.

O seu cavalo movia os cascos sob ele como que ansioso em sair e correr pelo terreno pegajoso até o grupo agitado, adiante.

— Estou pronto, pai — o garoto respondeu se curvando sobre seu animal e se posicionando como os outros guerreiros: com uma mão segurava o animal pela crina e com outra mão empunhava a lança em posição de ataque. Uma borduna de madeira trabalhada estava presa à suas costas, junto ao facão e às flechas.

Dinoyé bateu os pés no seu cavalo, que partiu a galope na direção que o seu próprio corpo se curvava direcionando-o. O filho partiu junto ao pai. Em poucos instantes alcançaram o grupo. Foi tudo rápido e Dinoyé viu que já havia alguns mortos no chão. Mas não percebeu nenhum dos seus caídos em meio aos outros. Um dos guerreiros inimigos os viu e empunhando o seu facão veio para cima deles. Mas a lança tinha um alcance mais longo, e Dinoyé deixou que o filho cuidasse dele, somente atento em protegê-lo caso o golpe falhasse.

Nagalageti foi firme e decidido. A lança entrou no coração do homem que viera em sua direção e ele caiu. Do modo que avançava correndo no animal, o jovem continuou em frente, puxando a lança de volta ao passar pelo corpo atingido. A lança se soltou deixando um guincho de sangue fluindo. O pai ficou aliviado e orgulhoso.

Mas não havia tempo para contemplação. Outros indígenas assustados ainda estavam vivos e atacando-os. No grupo invasor havia mulheres e crianças. Dinoyé sempre estranhara isso deles levarem mulheres para a guerra, mas não se importava. Ele e seus guerreiros tinham intenções para com esse grupo de pessoas. Seriam seus servos e as mulheres seriam usadas para procriação e aumento do grupo.

Dinoyé deu a volta ao grupo e, ao retornar junto com o filho, viu um homem preparando uma lança em sua direção. Não teria tempo de se desviar e nem de atacar, então jogou o corpo sobre o do filho, derrubando-o ao chão e caindo sobre ele. A lança destinada ao garoto estava agora no seu animal, no exato lugar onde ele se encontrava segundos antes. Ao se virar, ainda sobre o filho, para observar o seu atacante, Dinoyé o viu caindo ao chão com um machado de pedra na cabeça. Alguém o havia acertado.

Quando ele e o filho se levantaram com seus facões nas mãos, não viu mais soldados adultos vivos, somente mulheres e crianças, mas Dinoyé ainda terminou o serviço em um rapaz que tinha sido golpeado, mas que ainda se mantinha de pé tentando lutar. Dinoyé pegou sua faca pelo cabo e atirou no rapaz, acertando-o no coração. O rapaz caiu e amoleceu. Estava morto.

Dinoyé e o filho observaram ao redor. Havia vários cadáveres e feridos que os guerreiros do seu clã terminavam de exterminar. Mulheres tentavam acalmar crianças que choravam.

O grupo Eyiguayegi caminhou entre os mortos, verificando se não havia mais homens agonizantes. Ao constatarem que realmente havia acabado, começaram a arrastar as mulheres para fora do amontoado de homens. Elas tentavam resistir, principalmente por causa de suas meninas e crianças, mas sabiam que não havia mais como fugir. Sabiam agora quem eram os seus opositores e conheciam as histórias do que eles faziam com os prisioneiros. Seriam levadas e escravizadas por eles.


Nota: 

1. Eyiguayegi – de acordo com Sanchez-Labrador (1910, I: 266-268) significa "Povo da palmeira Eyigua". Ainda conforme José da Silva (2004, p. 41)


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Continua... 

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