Capítulo 03 - Coincidência

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~ 03 ~

Coincidência

Abro os olhos... “Que droga! Eu me esqueci de fechar as cortinas.” O sol bate em meu rosto e isso me frustra. Que horas são mesmo? Olho para o relógio e são 11h15min da manhã e isso me deixa aliviado. “Que ótimo! O Boris já deve estar aberto.”

Levanto e vou direto para o banheiro. Tiro as roupas e dou uma boa olhada para meu reflexo no espelho. Rosto pálido como um cadáver, cabelos cor de fogo que, agora, quase tocam meus ombros, barba mal feita como a de um bêbado. Parece até que fui atropelado por um caminhão... E por um momento me lembro das palavras do meu irmão. 

— Podemos ser gêmeos, mas somos muito diferentes.

Essa é uma verdade que não posso negar. Danilo sempre foi o filho perfeito, com cabelo sempre aparado, roupas sempre passadas e engomadas. É o exemplo de marido bonito, responsável, honesto e justo com que toda mulher sonha em se casar. Meu irmão acha que sou a ovelha negra da família... Ele sempre fez o tipo autoritário, aquele que se preocupa quando as unhas crescem um milímetro a mais e não vê a hora de apará-las, já eu não me preocupo nem em cortar o cabelo. Apesar de sempre admirá-lo, nunca quis ser como ele, na verdade, nem me imagino sendo assim! Mas, apesar dos pesares, eu o amo e sei que Danilo também me ama. Acho que é aquela coisa do sangue falar mais alto. Volto a olhar minha imagem no espelho e percebo que agora estou com a mesma aparência de “Chuck, O Boneco Assassino”. Começo a pensar na reação de alguns pacientes quando entram em minha sala.

— Como assim?! É você o doutor?

— Sim, sou o doutor Camilo. O que está sentindo senhora?

— Quero falar com uma enfermeira! Onde já se viu? É você mesmo que vai por a mão em mim?

— Senhora, acredite, eu sou muito capacitado para cuidar do seu problema!

— Não vou deixar que um médico bêbado me examine! Quero falar com uma enfermeira agora!

Já me chamaram a atenção muitas vezes no hospital por causa da minha aparência. Já chegaram até a me apelidar de gato surrado. Apesar das enormes evidências, não tinha ideia de que o mundo hoje vive a “Ditadura da Beleza”, talvez porque sou muito burro ou porque eu não queria saber mesmo. Debaixo do chuveiro, deixo a água quente cair sobre minhas costas e apesar de ser magro como um cadáver, tenho músculos bem rígidos.

Qual foi o sonho que tive? Está difícil lembrar... Foi algum cheiro...” Desligo o chuveiro e ainda com o corpo ensopado começo a me vestir. “Um cheiro bom... Muito bom!” Pego minhas chaves e saio do apartamento. “Um cheiro amadeirado...”

ooo

Fechado para reforma.

O novo Boris será aberto somente na terça-feira.

À gerência, Many.

Parece que a reforma do Boris levará uma eternidade. Aposto que nem Noé demorou tanto para construir a arca!”

Entro em uma lanchonete simples e apertada.

O que será desta vez, Milo? X-Burger, batata frita e Coca-cola? O que seu irmão acharia desse pedido?” Qual é a graça de sentir o cheiro maravilhoso de carne grelhando se não posso comer nada?

— Olha só quem está aqui! – Meus pensamentos são interrompidos por aquela voz. “Esse cheiro...”

— Doutor, o que faz aqui à uma hora dessas? Achei que os médicos comessem lesmas direto da concha.

— Anna? É esse seu nome não é? – Pergunto, tentando disfarçar o máximo possível minha expressão de surpresa.

— Isso aí! Vejo que tem a memória boa. E você, como se chama?

— Milo. Na verdade, Camilo Lira, mas todos me chamam de Milo.

— Então, doutor Milo... Quantas pessoas atende por dia? Umas mil? Aahh, nem consigo me imaginar trabalhando num lugar desses, com todas aquelas doenças. Já chegou a pegar alguma?

Ela não para de falar... Faz tantas perguntas! Espere! Por que ela está olhando pra baixo? Ahh não, ela esta olhando meus pés.”

— Sabia que seu tênis está sujo de cocô? – Ela começa a gargalhar. Aquele mesmo riso contagiante.

— Não... Ahh... Não é isso, é apenas café, sabe? Café! A recepcionista derrubou café nele ontem! – “Pare de contar isso, ela não quer saber o que acontece em sua vida.” — E como está o ouvido?

— Bem melhor. Ainda dói um pouco, mas nada que me faça perder outra apresentação, sabe? – Ela sorri sem parar.

— Apresentação de dança? – Pergunto. “Invasivo demais cara.”

— De canto. Eu consigo ganhar algum dinheiro cantando em bares que tenham música ao vivo, mas ontem eu tinha uma apresentação. Na verdade, era um teste para um musical, nada tão famoso, sabe! Mas era uma chance de tomar um rumo diferente.

Ela é mais pálida do que eu me lembrava. Agora, vendo melhor, sua pele é pálida como gesso.

— Te entendo. Tomar rumos alternativos não é para qualquer um. – Sinto-me tão à vontade em falar com ela.

— Eu acredito que qualquer um pode escolher fazer o que quiser. Ou, até mesmo, não fazer nada. Afinal, todo mundo morre um dia, não é?

— É exatamente o que eu penso! – Fico surpreso por ela citar uma coisa que penso quase todos os dias. — Acho que as pessoas perdem muito tempo pensando no que querem ser e acabam que não decidem nada.

— Pois é... Eu fui criada pela minha avó sabe, e ela acreditava muito que nada é por acaso, que tudo está escrito. – Anna sorri e coloca uma mecha dos cabelos negros atrás da orelha. — A vó até achava que tem pessoas escolhidas por Deus, pessoas com poderes... Não naturais. Ela sempre me dizia: “O que você planta aqui, você colhe aqui.” Enfim, não gosto muito de falar sobre ela. Mas sabe de uma coisa? Sempre achei que o destino é uma bobagem. Acredito que as pessoas são livres pra tomar decisões ou jogar tudo pro ar.

Ela pensa exatamente como eu. É legal falar sobre essas coisas com alguém, mas é, ao mesmo tempo, estranho, pois é uma pessoa muito jovem e desconhecida.

— Que droga, eu estou atrasada! – Anna engoliu de uma vez só o café que havia pedido. — Bem, já que está aqui, pegue isso.

Ela me entrega um cartão de um bar.

— Não fica muito longe daqui. Estou cantando lá a semana toda a partir das 20 horas. Se quiser aparecer por lá vai ser legal.

— Claro que sim. Será um prazer! – Anna me dá às costas e sai, deixando novamente seu perfume impregnado em minhas narinas.

— Vai querer alguma coisa, senhor? – Disse o balconista da lanchonete. — Ou vai ficar só na água?

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