Positividade

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Sábado, quatro de Janeiro de 2020. Onze e meia da manhã.

 O sol já estava escaldante, como sempre, mas hoje tinha tudo pra ser um bom dia. Kiel ia se encontrar com um velho conhecido, uma pessoa com quem aprendeu muito sobre humanidade e a vida, de maneira geral. Estava na rua Itapiru, um lugar bastante perigoso, que ficava entre dois morros de facções opostas. Carros ali pareciam sempre ter pressa, e havia a impressão de que algo bastante ruim sempre ia acontecer. Geralmente ele evitava este caminho, mas a pessoa que estava procurando só poderia encontrar ali. E, próximo a um posto de gasolina e uma oficina mecânica, lá estava ele. Nem. Um senhor que já devia beirar os setenta anos, morador de rua, sempre vestindo seu esfarrapado casaco do exército, sentado no chão e acenando gentilmente pra qualquer um que fizesse o favor de não ignorar sua existência. Sua pele era negra, os cabelos já todos brancos e com manchas amarelas de sujeira e falta de cuidados. O sorriso de felicidade do idoso ao encontrar seu "anjo da guarda" quase o fazia esquecer de todos os problemas de sua vida. Ele de fato reclamava de barriga cheia e estava infeliz, quando aquele senhor, que não possuía nada na vida, sempre esbanjava bom humor e tranquilidade.

- Nem, tô aqui - chamou o jovem

- Bom dia, meu filho. Como você tá?

- Um pouco ansioso, mas bem. E o senhor?

- O de sempre...

- Vamos almoçar? Hoje vai ser um dia cheio e quero começar bem.

E prosseguiram para um bar, não muito distante do posto. O dono conhecia a situação dos dois, então não questionou um morador de rua em seu estabelecimento, o que facilitava as coisas. Kiel se virou pro velhinho e perguntou:

- E aí, o que você manda hoje?

- Qualquer coisa que mate a fome.

- Isso eu sei, mas o que o senhor quer?

- Tô com vontade de comer frango - falou Nem, sempre tímido e sem graça por depender da boa ação dos outros, mesmo sabendo que era de bom coração.

- Então pode mandar dois pratos caprichados de frango com fritas, Chef. E um suco pra acompanhar.

Quando a refeição chegou, Nem estava tão ansioso para comer, mas mesmo assim, parou pra agradecer ao seu deus. O fato dele ainda ser fiel e grato, mesmo com a vida dolorosa e dura que teve sempre intrigava Kiel, que não entendia como um senhor em condições tão precárias ainda mantinha a fé.

- Então vamos comer... tô cheio de fome.

- Vamo sim, filho.

Depois de terminada a refeição, olhou para o prato de Nem e percebeu que ainda estava pela metade, o que o incomodou um pouco.

- Nem, não precisa guardar. Deixei uma refeição paga pro jantar, essa você pode comer até encher. Não precisa se preocupar, a janta tá paga.

O senhor o encarou com os olhos marejados, mas, endurecido pela vida como era, o velhinho simplesmente agradeceu.

- Deus te abençoe, meu filho.

Kiel olhou o relógio e viu que eram meio dia e meia.

- Então, tenho outra boa pra te dar. Vamos lá em casa, separei umas roupas pra você e estou com uma máquina nova pra dar um jeito nesse cabelo selvagem aí.

Ambos riram, e era revigorante ver a felicidade no olhar de um senhor de idade. Quando terminou o corte já eram quase duas da tarde, e ele tinha uma entrevista marcada para as três no Centro.

Era quase impossível que um dia que havia iniciado de forma tão maravilhosa pudesse terminar mal. Hoje vai ser um dia bom. 

Maldição da BrevidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora