FASE 3: Conselheira Paranormal (coautoria: @AcireRomua)

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Levantei o véu que recobria o meu rosto e o retirei cautelosamente, na tentativa de não bagunçar o penteado. Abanei-me um pouco com o crachá, mas nem assim consegui me livrar da angústia. Era mais um ato reflexo do que qualquer coisa. Aliás, respirar, comer, dormir, sentir frio ou calor eram apenas memórias. E eu sentia saudades dessas e de muitas outras coisas.

Mesmo os indesejáveis incômodos do dia a dia faziam falta. Eu queria experimentar de novo a raiva de ganhar um banho de lama depois de um motorista mal educado fazê-la esguichar sobre mim em um dia chuvoso. Só de pensar nos pingos de chuva, no desconforto de andar pela calçada com a roupa molhada grudando no corpo, me perco no mundo da imaginação.

Por causa desse saudosismo, eu sempre caía nos velhos costumes, o que deixava as minhas colegas intrigadas. Eu causava estranheza. Não era todo dia que se via uma noiva fantasma sentindo calor. O sol escaldante nada significava para elas (e para mim era tão irrelevante quanto para as outras, em termos práticos). No entanto, isto não parecia me impedir de cozinhar sob o vestido de renda com mangas compridas.

Quem havia encomendado? Ou melhor, por qual motivo a repartição não procurava alguém qualificado para fabricar os uniformes? Ano após ano a qualidade só decaía. Eu não aguentava mais ser asfixiada — se é que é possível parar de respirar depois de já ter parado de respirar — por alguma parte do vestido. Naquele semestre, então, os vestidos vieram caprichados. Eu tinha certeza de que os escolheram aleatoriamente na arara de ponta de estoque da Terezinha Noivas.

Antes tivessem me deixado ficar com a minha roupa original... Era uma peça simples, feita com muito carinho pela minha avó materna, tinha o caimento perfeito e combinava com a tonalidade dos lírios brancos do buquê. Ainda que o acidente houvesse deixado o coitado igual a um pano de chão imundo, eu preferia usá-lo. Um vestido encardido definitivamente era melhor do que mangas compridas, gola alta e um véu à moda antiga, volumoso como uma peruca.

— Lírio! — Margarida bradou, furtando-me dos devaneios.

A diretora era uma pessoa comedida e nunca gritaria no dia a dia, mas eu e minha desatenção estávamos testando sua paciência. A Conferência Anual da Sociedade Paranormal de Conselheiros começara a todo vapor e eu, uma das palestrantes do dia, me preocupava mais com o fato de estar em cima de um palanque a céu aberto debaixo do sol a pino.

Comecei 2021 com o pé esquerdo, devo confessar. Precisava ter representado melhor a Repartição das Noivas Seção Nordeste. O jeito que eu levantei e saí correndo em direção à Margarida para pegar o microfone, com o tule do véu enroscado na minha mão, só serviu para espantar as outras conferencistas e as ouvintes.

Elas deviam estar pensando: “Quem é essa maluca?”

A maluca — no caso, eu — era a Conselheira Sênior. Dei um belo discurso, apesar da gafe. Estava no negócio há oito anos, não seria uma breve exposição de estatísticas e planejamento anual que me intimidariam. Garantir um verdadeiro “Grande Dia” às noivas, ao longo desses anos, tornou-se a minha paixão e eu expressava isso em cada sílaba das palavras saídas da minha boca.

Além dos aspectos técnicos do trabalho envolvendo a recepção das novas conselheiras e demais apresentações exaustivas, a conferência também abrangia o primeiro sorteio do ano. Realizávamos sorteios mensais para definir quem acompanharíamos e o período do aconselhamento. Mesmo vivenciando aquela apreensão todos os meses, janeiro nos deixava particularmente ansiosas, desesperadas para abrir o ano com chave de ouro.

Rendas ladeavam tules, o salão do Centro de Convenções havia virado um amontoado de tecidos brancos das noivas agitadas à espera da revelação.

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