Minhas mãos trêmulas seguravam o palito de fósforo antes que ele beijasse a lateral da caixa e queimasse. Eu já estava incendiada por dentro, por um tipo de fogo invisível, mas aquele simples gesto me fascinava. Gostava de ficar riscando repetidas vezes até que algo acendesse. Era uma brincadeira de tentativas.
Tentativa. Soletrei a palavra bem devagarinho, saboreei os fonemas atando-os de forma violenta ao meu consciente. T-E-N-T-A-T-I-V-A. Quantas vezes aquela palavra me perseguiria? Quantas vezes aquela chama me queimaria? Por quanto tempo eu iria simplesmente tentar? Em segundos, o pequeno ponto de luz na ponta daquele palito foi o consumindo, não sobrou nada, além de cinzas. Quase queimei o dedo. Mas porque doía? Eu já não estava queimando por dentro? Que diferença isso fazia?
Abri a caixa outra vez, escolhi dentre aquelas dezenas de palitos o felizardo que iria morrer após acender. Era isso que acontecia? Quando a luz acendia morríamos? Estava prestes a riscar o fósforo para finalmente fazê-lo encontrar seu propósito de existência: queimar e fazer acender boca do fogão e esquentar algum resto do almoço que pudesse me servir de jantar. Por um segundo, ouvi meu estômago falar algo. Não, não! Falar seria um eufemismo gigante. Meu estômago gritou alguma coisa enquanto minha cabeça não parava de doer. Eu precisava do combustível, precisava me alimentar, saco vazio não para em pé, já dizia minha mãe. Nesse breve instante, a campainha tocou impacientemente, deixei tudo por fazer, mesmo que uma força tentasse me convencer de que eu deveria ignorar aquele barulho.
Só uma pessoa tinha tamanha audácia de me importunar naquele momento sagrado que era comer. Seu nome era Maurício, meu namorado. Ironicamente, ter começado falar de fogo veio a calhar. Ele costumava apagar incêndios.
Maurício era bombeiro.
Imagine uma mistura do Brad Pitt, do Leonardo Di Caprio e uma pitadinha do Zac Efron, Maurício não era nem de longe assim. Ele era um cara normal. É estranho falar isso, parece que dizer que alguém é normal pode soar ofensivo, não é? O que é ser normal mesmo? Mas tentando melhorar minha formulação, gostaria de esclarecer que meu parceiro amoroso não era nenhum estereótipo que nossa sociedade engessou ao longo dos anos. Maurício era comum, corriqueiro, sem nenhuma coisa extraordinária que o fizesse ser capa de revista ou galã de filmes ou novelas.
Não era gordo e nem magro, os músculos que possuía deviam-se ao seu ofício, não era considerado nem bonito e nem feio, e eu já tinha passado da fase de querer o Zac Efron de namorado, para mim o que importava era que o cara fosse real e respeitoso. Maurício era o combo perfeito.
Ele tinha algumas cicatrizes que o deixam com uma aparência peculiar, eu diria. Eu sempre gostei de coisas peculiares. As queimaduras dele não me incomodavam. Mas eu tinha a leve sensação que as minhas, essas sim, elas o deixavam desconfortável, mesmo que ao contrário das dele, as minhas fossem invisíveis.
— Hoje você não escapa. — ele era sempre assim, direto ao ponto. Não se preocupava em me cumprimentar, nem nada. Ele simplesmente falava o que lhe dava na telha. Por vezes reclamei daquilo, exigi que ele fosse um pouco mais carinhoso, que se esmerasse em melhorar nosso namoro salpicando um pouco de romance na relação.
Romance. Essa palavra só funcionava nos livros... Nos meus livros. Eu tinha inventado a porcaria da ideia de me tornar escritora. Eu devia ter escutado minha mãe como escutei sobre sacos vazios não pararem em pé, e de uma vez por todas deveria parar de insistir nisso.
Mas as Palavras eram como a lateral da caixinha de fósforo, quando eu as tocava, ou vice-versa, sempre brotava uma chama irresistível Por isso, eu precisava deixar queimar, mesmo que isso estivesse me fazendo morrer por dentro.
— Você não deveria estar no trabalho?
— Vim me certificar se você vai à sua consulta novamente. — Ele tracejou um sorriso inocente, tentando me persuadir a acreditar na sua notável preocupação comigo. "Caramba, ele tinha deixado o trabalho para checar se eu iria ao meu psicólogo". Os pensamentos povoaram minha mente, e aquele fogo que ele irradiava pelo sorriso foi me consumindo, mesmo que eu soubesse que aquela "incontestável" ideia altruísta, era sim contestável e cheia de egoísmos. Qual parte dele se preocupava mesmo comigo? E qual parte dele queria ter sossego enquanto eu insistia em desabafar meus problemas com ele?
— Eu só estava tentando esquentar algo para comer, mas eu vou. — Mal terminei a frase e notei que ele me olhou de cima a baixo, examinando-me como se eu fosse uma floresta em chamas e tentando encontrar o melhor caminho para sair daquele sufoco.
— Você está de pijamas, Emily. — pela primeira vez, curvou-se para dentro de casa, apoiou as mãos na lateral da entrada e meneando a cabeça para o lado. — Está com a TV ligada, aposto que vai se afundar no sofá e assistir algum daqueles seus seriados ridículos. E pelo cheiro, aposto que está requentando macarrão. — Ele deu um longo suspiro sem desviar o olhar dos meus. — Aposto que vai se esconder debaixo da coberta e fingir que tudo está bem, até você começar a chorar de novo e me ligar desesperada. Não, Emily, você não me engana. — Ele cruzou os braços e deu outro longo suspiro e naquela fração de segundos chequei minha roupa. Eu vestia uma calça xadrez bem folgada e confortável, uma blusa da mesma estampa e nos pés pantufas de pés de monstro, não poderia contestar aquilo, não mesmo. — Pedi folga hoje, faço questão de leva-la para ver o Dr. Micael.
Silêncio.
Eu gostava de silêncios, principalmente quando minha mente sabia o que ele significava, mas eu não sabia o que era silêncio há muito tempo. Ansiedade era uma coisa terrível, minha mente não parava, não havia nenhum lugar de mim que eu pudesse ter paz. E embora nenhum de nós dois falássemos algo, eu sentia que várias vozes e pensamentos povoavam meu cérebro. Aquilo estava me desgastando e eu odiava admitir que meu namorado tinha completa e total razão.
— Só tenho meia hora, não jantei, e estou com muita fome e dor de cabeça, não vai dá tempo e...
— Compro um lanche pra você no caminho, não esquenta.
— Esse é o problema, eu sempre estou fervendo de ideias, Maurício.
— Ideias nada empolgantes, eu suponho.
Não, não eram, eu queria mesmo era acabar como aquela chama, queimar e depois partir. Mas não dava, não com Maurício insistindo tanto. Não com os esforços da minha mãe e nem porque ainda por mais pequenino que fosse, uma luzinha brilhava dentro de mim e se chamava: sonho.
Eu precisava apenas de uma chama. Da chama certa paravoltar a iluminar tudo aqui dentro, mas eu conseguiria?
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O clube dos escritores esquecidos
RomanceEmily vive na cidade ficticia chamada Forte dos Poetas e é uma aspirante a escritora desde os seus dezoito anos de idade. Tem tentado incessantemente publicar algumas de suas obras, mas simplesmente é rejeitada por todas as editoras que ela entra...