Futuro do pretérito

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       Ela chegou na mesma velocidade que se foi. Quando eu menos esperava me deparei com um desses amores que disparam os alarmes de incêndio da mente. Quando dei por mim estava tocando funk no topo do morro do fundo do meu coração. E quem me via sabia que eu tinha encontrado.

  O amor invadiu minha casa sem limpar o pé. Deixou tudo sujo e bagunçado e até me fez mudar algumas coisas do lugar. Mudou a iluminação, trocou a playlist e ainda deixou a porta aberta. E eu tinha certeza que ele já iria embora. E eu não poderia estar mais enganado. Em mim ele ficou e resolveu que não iria enquanto eu quisesse. As coisas não funcionam como nós queremos. E as coisas não funcionam como não queremos, as coisas não pedem a nossa opinião.

  Ela estava na minha mente. Seu cheiro, sua pele, seu rosto, sua voz. Mesmo se algum dia eu fosse capaz de esquecer seu nome, sei que aquele rosto nunca me daria trégua. Eu sentia que ela junto de mim deveria ser obrigatório. Senti que deveria ter uma lei a proibindo de se afastar, como uma medida protetiva ao contrário. Se fosse muito longe seria presa. Alegaria talvez abandono de incapaz.

  Mas como do nada surgiu, ao nada retornou. Os encontros foram avassaladores, e eu pensava que diante de tantos bilhões de pessoas no mundo, duas almas como as nossas não se encontrariam ao acaso. As falas me levavam a crer em algo que não era real. Os beijos, abraços me faziam criar imagens na minha mente que não tinham fundamento, e eu sabia disso tudo. Eu me deixei acreditar. Pensei que seria diferente, eu bati no peito dizendo pra mim mesmo que ela era diferente. Ela não era. E o pior de tudo é ter que encarar as próprias certezas se afundando ao bater de frente com o tempo. Ah, o tempo. Esse que tem o estranho poder de mudar as coisas.

  As conversas foram perdendo o entusiasmo. As fotos foram perdendo o ritmo e meu prematuro castelo de cartas foi desmoronando. É nos detalhes que o amor chega, e é nos detalhes que ele se vai. E eu não consigo deixar de pensar em tudo que poderia ter sido. Eu ligaria pedindo pra ela passar na padaria e pegar qualquer sonho que quisesse, que eu estaria em casa esperando já esquentando a água pro café. Pensei em aprender uma música por dia pra quando ela chegasse do trabalho. Pensei nos pratos que prepararia, e os vinhos que harmonizariam. Pularíamos ou não o café da manhã, não arrumaríamos a cama todos os dias. Pediríamos comida, xingaríamos o governo. Defenderíamos o SUS e eu riria sem motivo ao olhar pro rosto dela. Nos beijaríamos no meio da frase e você dormiria com meu carinho no seu cabelo.

  Eu sei que não serve de nada pensar no que poderia ter sido, mas eu não consigo evitar. Eu via tanto potencial. Mas o que eu vou fazer, se das minhas dez músicas favoritas, sete tocaram no carro no nosso primeiro encontro? Se meu corpo ainda tem seu toque, gravado na memória muscular? Se seu nome é incomum demais pra eu confundir e seu rosto é o mais lindo que eu já vi? Há pessoas inesquecíveis, e para isso não há cura, diria Bukowski. E acredito que também não deve haver vacina, se não estaria disponibilizada no SUS.

  Eu entendo, as coisas mudam. Pensamentos, ideias estão sempre à mercê do tempo. Ela estava quase bêbada quando me jurou amor, e eu perguntei estúpida e sobriamente se ela se lembraria de tudo que foi dito na manhã seguinte. Ela disse que sim, e de fato lembrou. Mas na semana seguinte talvez tenha se esquecido. Ou apenas mudado de ideia. No final das contas, citando Allan Poe, tudo que amei, amei sozinho.

  Te achava o amor perfeito, mas depois eu vi que era pretérito. Na verdade, você me traz tudo que poderia ter sido. Você é meu futuro do pretérito favorito.  

      O amor de fato veio, fez sua bagunça e eu imaginei que ele iria embora. Ele resolveu ficar, fazer morada em mim. Quando eu comecei a gostar da ideia ele se foi, e deixou toda a bagunça pra eu limpar. Mas acho que a vida é isso, e só pode ser isso. Quando o amor chegar, temos que deixá-lo entrar. Fazer se sentir confortável, e ver se ficará. Não tem como fazer vir. E se for pra ser, não tem como fazer ir. E não tem como controlar o amor, quando ele está. Quando percebeu, seus planos foram mudados, seus jeitos e trejeitos estão se alterando, e até sua forma de ver o mundo está diferente. Ninguém sai o mesmo depois da chegada de um amor. Então quando o amor chegar, que estejamos sempre prontos. O amor vem e vai exatamente no momento que deveria. Nem antes, nem depois. Talvez o amor fique. Talvez o amor não possa. Talvez o amor não deva. Se ele se for, não importa o tamanho da bagunça que tenha deixado, que saibamos pedir para deixar a porta aberta. Que saibamos dizer: "Obrigado por ter vindo..."

Tudo que  não fui capaz de falarOnde histórias criam vida. Descubra agora