O relógio velho de ponteiros enferrujados no pulso esquerdo de Curatt marcava 17h30. Em quinze minutos a contagem começaria e se atrasar era algo que o rapaz não queria - ninguém em sã consciência iria querer. Por mais que ele achasse tentadora a ideia de desafiar a autoridade dos juízes¹ da URB², aquele havia sido um dia muito cansativo e terminá-lo sendo açoitado por um chicote não era algo que lhe parecia ser aprazível. Apesar das bordoadas que já havia levado ao longo dos anos trabalhando na colheita e nas rodas de rinhas em que se metia, um supercílio ou um nariz sangrando não chegava nem perto do que deveria ser a dor de ter as costas dilaceradas pelo chicote de um juíz - pelo menos ele pensava assim, mal conseguindo se lembrar da dor mais intensa que já sentira.
Curatt correu através do vasto campo de milhetes saltando por cima dos obstáculos que encontrava pelo caminho, sentindo o vento que vinha contra seu rosto esvoaçando seus cabelos negros e ondulados. Ao longe viu os demais colhedores se enfileirando no meio do descampado. Homens se enfileirando de um lado e mulheres de outro. Ele era o penúltimo da primeira fileira dos homens, era chamado de Nonagésimo-Nono ou simplesmente Nove-Nove, assim como os demais que não eram chamados por seus nomes - apenas pelas numerações que estampavam seus braceletes. De fato, todos aqueles que não pertenciam à Bastileza³ eram enumerados como objetos-propriedades do governo para facilitar a contagem dentro das hierarquias e, obviamente, controlar o crescimento populacional dentro das colônias. O que diferenciava sempre era a cor dos braceletes. Os braceletes dos colhedores era de um tom cinza escuro - margeando o preto -, os dos encaixotadores era de uma cor que fazia lembrar os campos de cevada, daqueles que trabalhavam diretamente com a Bastileza - como os juízes e pesquisadores - era dourado... entre outras cores para designar as hierarquias dentro do sistema daquele novo modelo de sociedade.
O rapaz chegou a tempo. Antes que o juíz responsável pela contagem de sua fila notasse sua falta, ele se encaixou cuidadosa e silenciosamente entre o Nonagésimo-Oitavo e o Centésimo - era esguio demais para provocar qualquer diferença que fosse ao se encaixar na fila. Mas antes disso tomou cuidado de esconder sutilmente seu objeto proibido com a manga da camisa a qual mal se notava que um dia fora branca. Seu coração estava a ponto de saltar pela boca, não sabia se suava mais pelo esforço físico ou pelo medo de não chegar a tempo - talvez pelos dois motivos.
- Uma hora dessas você ferra todo mundo!
- Nove-Oito, eu cheguei a tempo, não cheguei?! - respondeu Curatt para o amigo, sussurrando entre os dentes, tomando o devido cuidado para não ser ouvido pelo seu juíz.
Ele e o Nonagésimo-Oitavo se conheceram nos campos de colheita, quando Curatt foi relocado por ter uma das mãos esmagada na máquina que lacrava os caixotes abastecidos de arroz. Um momento de descuido e num repente seu grito pôde ser ouvido nos arredores de um dos casarões de armazenamento. O pobre rapaz ainda levou uma surra por sujar uma parte do arroz daquele caixote com seu sangue. Curatt perdeu boa parte do movemento de sua mão direita mas se consolou por saber que não ficaria sem ela e mais ainda quando soube que começaria a ser útil em um dos campos de colheita, já que sua destreza para manusear a máquina havia sido esmagada junto com sua mão.
- Estão dispensados por hoje - gritou o juíz já perto de Curatt, fazendo todos se dispersarem.
O rapaz se dirigiu para sua casa - se é que podia chamar aquilo por esse nome. Ele morava sozinho em uma choupana que parecia que ia desabar a qualquer momento. Não tinha família. A única lembrança que tinha daquilo que mais se aproximou de ser uma família era do corpo de seu pai sendo arrastado por um dos colhedores através do campo - depois disso, ele passaria a viver sozinho por longos e solitários anos, já que não poderia ir mais para um abrigo de órfãos, pois pela lei já era reconhecida como maior idade a idade do rapaz. Ele tinha apenas quinze anos e naquele dia, em um momento de fúria, seu pai começou a espancá-lo, lhe deixando desacordado, o que lhe rendeu uma cicatriz no maxilar. Um dos colhedores não viu outra opção a não ser defendê-lo, golpeando seu pai brutalmente com um cano de ferro, o que o fez cair no chão e não mais levantar. O velho colhedor que o defendeu teve de ser condenado à morte - mais para mostrar que o único que poderia puní-los era a Bastileza do que por matar outro colhedor. Aquela seria a primeira das muitas vezes que o rapaz veria a Lei de Talião ser posta em prática. Mas aquelas lembranças eram remotas demais pra trazer qualquer tipo de dor a ele; o que lhe incomodava mesmo era o fato de sua mãe tê-lo abandonado antes que ele pudesse criar qualquer memória sobre ela. "Essa é a vida, Curatt!", ele dizia para si mesmo todas as vezes que pensava sobre o assunto.
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PROJETO REMEDIUM
Science FictionCuratt é um colhedor de milhetes em uma das colônias de seres humanos sobreviventes que situa-se no que ele acredita ser o último lugar habitado da Terra. Em um mundo pós apocalíptico, dentro de um novo modelo de sociedade - onde o Único tem o poder...