Capítulo I. Tem alguma coisa dentro de mim

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- EU VOU FODER vocês de um jeito que até o seu deus vai chorar! - Eu grito enfurecida.

Eles são um bando de fodidos do caralho. Não sabem com quem estão mexendo. Quero ver se eu estivesse fora dessa porra de lugar, se iriam me tratar dessa maneira.

Pego uma das revistas na ala de recreação e encaro os enfermeiros que estão apostos para me conter a qualquer momento. Meu peito sobe e desce de fúria. A raiva me consome gradativamente. Eu preciso arrumar um jeito de sair desse lugar infernal. Eu não entendo os motivos de Camille acreditar que toda essa palhaçada de viver numa ala psiquiátrica vai resolver alguma coisa. Quanto mais tempo eu passo aqui, mais vontade eu tenho de acabar com tudo. Pobre Camille, não tem culpa de ser tão burra e ingênua, ainda bem que estou na vida dela. Ou ambas, estaríamos fodidas.

Eu odeio a minha vida.

Eu preciso desesperadamente sair daqui. Sair desse maldito lugar e tomar conta do meu próprio corpo. Odeio ter outra pessoa aqui dentro. Às vezes, eu me perco e não sei mais para onde ir. Não entendo muitas vezes para onde fui parar, o que foi que eu fiz na noite passada e me perco em tudo. É uma bosta viver dividida. Num dia você conhece uma pessoa e no outro, simplesmente a ignora, porque um outro alguém dentro de você o conheceu. É confusão demais.

"Você sempre vai estar segura comigo, Denise.", sua voz ecoa e eu sinto meus olhos percorrendo o fundo de minha mente.

- Cala a boca. Não quero ter que lidar com você agora.

Não quero ter que lidar com uma maldita camisa de força agora.

O lugar está lotado de doentes. Doentes da cabeça mesmo. Mas nenhum deles é doido ou fodido como eu. Eu tenho um sério problema na cabeça. Todo mundo sabe disso. É só ficar alguns minutos perto de mim para saber quanta merda eu tenho na cabeça. Às vezes, rola uns apagões e eu do nada estou falando como uma menininha, sem controle nenhum sobre o meu corpo. Outrora, estou sem controle e presa numa cama com uma camisa de força. É uma merda. Sem contar quando acordo babando e com dor por toda a extensão de meu corpo. E não posso deixar de mencionar os dias que eu tomo boa noite Cinderela a contragosto e, só alguns dias depois, retorno ao corpo.

O enfermeiro-cara-de-fuinha está de olho em mim. Aquele filho da puta. Está sempre atrás das pacientes mais desequilibradas e completamente dopadas, para fazer merda. Na verdade, ele quer fodê-las, literalmente. Estou de olho naquele desgraçado faz dias, mal posso esperar para pegarem ele no flagra. Odeio o modo como age. Seu modo predatório asqueroso, o golpe baixo que atinge suas vítimas. Ele fode com todas. A superdose e suas mãos asquerosas, apalpando e apalpando seus corpos. Eu vou dar um jeito naquele maldito. Custe o que custar.

Camille está se contorcendo em algum canto dentro de nós. Ela não gosta quando eu apronto. Nem sempre eu sou a malvada de nós duas. Eu sou controladora, é diferente. Gosto de manter tudo do meu jeito aqui dentro. Camille não sabe lidar com a pressão e com pessoas ruins. Ela acredita que eu sou o próprio mal. Mas não é bem assim. Por mais que eu goste de ter o controle sobre tudo, não sou louca. Ah, tudo bem... Só um pouquinho. Se bem que, tudo é questão de ponto de vista.

Dois enfermeiros abrem a porta acompanhando uma nova interna. Seus cabelos escuros estão emaranhados de uma maneira horrorosa. Parece que ela não toma banho a dias, mesmo vestida com aquela roupa asquerosa que nos dão ao sermos internados nessa porcaria de lugar. Moletom e camiseta. Sutiã esportivo sem aros e sem enchimento. Não podemos ter acesso a nenhum instrumento que possa ser utilizado como meio de nos machucar ou a um interno, mas o primordial é: não machucar nenhum funcionário. Continuando, os tênis que ganhamos aqui tem que ser lisos e não podem ter cadarços. Não parece que é uma clínica psiquiátrica, aqui cheira a presídio. Eu vivo numa droga de prisão perpétua, sem ao menos ter tido um julgamento.

Levo um verdadeiro susto quando a nova interna começa a chorar e dá um soco no estômago de um dos enfermeiros. Pelo visto alguém ficou sem ar. Dobra seu corpo para a frente e quase cai ao chão. Eu não dou uma risada sequer, mas Camille gargalha sem parar. Parece uma maluca desvairada. O enfermeiro-cara-de-fuinha se aproxima da novata com fúria. Eles lutam. A garota está enraivecida. Mas como sempre, aquele maldito levou a melhor. A garota não tem a menor chance quando é imobilizada e o outro enfermeiro aplica uma bela dose de boa noite cinderela. Não demora muito para ela estar no mundo do nada, babando em Nárnia.

Camille odeia ir para o nada. Eu confesso que também odeio. Você fica num limbo e do nada acorda com o corpo pesado, a boca com gosto de metal, suas juntas doloridas como se tivesse ido no Brás e voltado para casa com várias sacolas pesadas, sem nem ao menos ter sentado num banco do metrô na volta para casa. Odeio quando me dopam. Odeio não saber o que é real. Odeio não estar no controle. E odeio mais ainda aquele enfermeiro.

Meus olhos se agitam quando o enfermeiro-cara-de-fuinha ao pegar a novata no colo, apalpando seus seios com olhos devassos. Seus olhos piscam vagarosamente, como se aproveitasse cada milésimo de sua transgressão. Suas mãos apertam mais do que deve. Ele já tem o próximo brinquedinho e, eu tenho a minha chance de vingança.

O mundo se agita.

O tremor em meu corpo quase me paralisa, arrebentando-me os músculos. Paralisando-me. Eu sinto a raiva me queimar viva. A sede de sangue cresce com uma volúpia que dá náuseas. As pontas dos meus dedos formigam, deixando as pontas das falanges sem cor. As palmas de minhas mãos suam. Minha boca fica seca...

Eu vou sair daqui, nem que seja aúltima coisa que eu faça com vida.

Apartamento 213 (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora