Parte 1

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Se um dia você estiver desperdiçando seu tempo nas redes sociais e receber uma solicitação de amizade de um pássaro usando um estúpido chapéu, apague antes de ver. Eu sei que parece idiota, mas vou contar o que aconteceu comigo, e você poderá tirar suas próprias conclusões.

Algumas semanas atrás, recebi um pedido de conexão do tal perfil. Sem descrição. Sem fotos. Sem posts. E, além de mim, sem amigos. De cara, achei que era uma daquelas contas falsas usadas para aumentar interações com blogueiros em início de careira. "Multiplique por mil seu número de likes! Arrasta pra cima e nossos robôs farão todo o trabalho." Resolvi deletar, mas antes de clicar em "Desfazer amizade", o perfil fez um post. Para minha surpresa, eram fotos minhas.

Olhei com atenção e vi que elas haviam sido tiradas naquele mesmo dia. A primeira me mostrava na cantina do colégio na hora do intervalo. O texto da foto dizia algo como "Daniel comprou uma coxinha, contrariando sua mãe, que havia lhe dito para comprar algo saudável." A propósito, eu me chamo Daniel.

A outra foto havia sido tirada à tarde enquanto eu jogava bola. O texto dizia que eu havia deixado de estudar para brincar de bola no parque. "Brincar de bola? Fala sério." Pensei que o Greg estivesse de sacanagem comigo. Mas não era a cara dele fazer isso. "Isso é coisa do Jef." No dia seguinte, perguntei a eles, mas eles negaram. Quando fui mostrar o perfil, adivinhem só, as fotos tinham sido apagadas. Ainda tive que aguentar as piadinhas o resto do dia. "Dani, olhe aqui e diga XIIIIIIS."

Pensei em tirar um print dos posts na próxima vez, mas isso não ajudaria em nada, só daria mais lenha para as brincadeiras do Jef. Decidi procurar quem estava me fotografando, mas depois de uma olhada em volta no colégio, desisti na hora. "Impossível." Hoje em dia, até as crianças do jardim de infância têm celular. No fim das contas, acabei mantendo a amizade com pássaro stalker na esperança de algum dia descobrir quem era o dono do perfil. Se não tivesse feito isso, talvez tudo estivesse diferente agora.

Depois de uns dias, entendi mais ou menos como a coisa funcionava. Todas as noites eram postadas fotos minhas daquele mesmo dia. Pelo menos uma. Não mais que cinco. Cada foto tinha um texto descrevendo o momento. Na manhã seguinte, tudo era apagado.

Tirando a parte sinistra de ter alguém me seguindo e tirando fotos sem autorização, achei a brincadeira interessante. Era divertido ver a minha vida pelos olhos de outra pessoa. E queria saber até onde aquilo ia chegar. "Se ele quer brincar, então vamos brincar."

Certa noite, lendo os textos, percebi uma coisa. As postagens eram sobre mim, mas tinha muito das outras pessoas ali. Numa foto do ensaio da banda — falo dela depois —, eu estava conversando com a Mel e o texto dizia "Daniel perguntou se Melissa estava namorando alguém. A garota disse que não, e imaginou se um dia ele saberia que ela o amava."

Não havia sido exatamente uma revelação para mim. Eu até suspeitava que a Mel gostasse de mim, mas nunca tinha investido porque ela não era bem o meu tipo. Mas o que realmente me chamou a atenção foi a descrição do que ela pensou na hora. Como o dono do perfil poderia saber daquilo? Era muito pessoal. Ou ele havia inventado, ou era alguém próximo a mim.

Pensei no Greg novamente. Ele era meu melhor amigo e talvez o único que pudesse saber. Mas ele não ia expor a Mel desse jeito, ele era muito certinho para isso. Eu precisava de mais informações.

Na noite seguinte, o perfil postou uma foto minha fazendo compras no mercado. Pelo texto, o caixa achou que eu estivesse escondendo alguma coisa debaixo da blusa. Naquele dia eu não estava, mas comecei a fazer compras em outro lugar, por via das dúvidas.

Um tempo depois, perguntei para a professora de história o que cairia na prova. O post mostrou que a resposta dela fora bem diferente do que ela havia pensado: "Tanto faz, você não vai passar mesmo." Uma profissional exemplar da área da educação. "É o que veremos! Posso não saber sobre Capitanias Hereditárias, mas conheço uma boa tática pra passar na sua prova."

A coisa se repetiu mais algumas vezes. Elogiei a roupa de uma colega e descobri que ela achava que eu me vestia mal. Fui pegar uma encomenda na portaria do prédio e confirmei minha teoria de que o porteiro bebia no horário do expediente. Também descobri que a caixa da cantina estava tirando uma parte dos lucros para ela mesma. "Isso pode me render umas coxinhas de graça." E que nossa vizinha da frente odiava o nosso cachorro. Essa última me fez sugerir a meus pais adotarmos um novo companheiro para o Sir Rex-A-Lot. Eles não gostaram da ideia.

Uma pessoa normal acharia que tudo isso fosse fruto da imaginação fértil do nosso querido amigo de chapéu. Uma pessoa normal acharia que a brincadeira estivesse indo longe demais e denunciaria o perfil. Uma pessoa normal ligaria para a droga do 190. Eu sei lá.

Afinal, adolescentes não são pessoas normais. Acho que tem a ver com nossos hormônios. Então ignorei qualquer resquício de sensatez que eu pudesse ter e cheguei à única conclusão possível para toda a situação: eu tinha acesso ao pensamento das pessoas.

Sim, é isso mesmo. Eu realmente acreditei nisso sem questionar... bom, tudo o que se havia para ser questionado. Mas nesse ponto eu já ignorava o fato de que alguns posts tinham fotos em lugares fechados, ou até mesmo dentro da minha própria casa. Então parando para pensar, até que fazia sentido.

Eu estava deitado em minha cama olhando para o último post do perfil quando tive essa espécie de epifania — para não dizer surto psicótico. — Minha recém-descoberta me fez sorrir. Meu corpo foi tomado por empolgação, como uma garotinha na véspera de Natal esperando para receber sua boneca que mija e faz cocô. Meu coração começou a bater mais forte. Minha respiração se acelerou. Minha cabeça começou a ferver com as inúmeras possibilidades de uso do meu mais novo superpoder. Sim, era isso que aquele pássaro de chapéu era: meu superpoder. E eu era a droga de um X-Men. "Toma essa, professor Xavier."

Meu sorriso se transformou em uma risada, que não parou por algum tempo. Demorou para que meu devaneio terminasse e eu voltasse a mim — se é que posso dizer isso. — E quando o fiz, comecei a planejar os próximos passos. Eu não queria dominar o mundo ou algo do tipo. Afinal, eu ainda era só um adolescente estúpido cheio de hormônios. Eu só queria me divertir um pouco.

No dia seguinte, comecei a colocar o plano em prática.

Apague Antes de VerOnde histórias criam vida. Descubra agora