Capítulo 1

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      Uma semana. Duas palavras apenas, mas que tem todo um significado.

      Daqui a sete dias, vou disputar o título de solista regional. Se eu vencer, por pelo menos mais um ano não vou ter que me preocupar com taxas de inscrição nas competições, além de ganhar, por mês, um par de sapatilhas de ponta.

      Estou muito motivada pra essa disputa, que esse ano vai acontecer na cidade de São José dos Campos, e segundo a Fernanda, o nível de excelência das bailarinas será bom. Só de pensar que nomes como Maria Luíza Pomini vão participar como convidadas e abrilhantar a competição, tudo o que eu posso querer é dar o máximo e fazer bonito. Quero conquistar não só o título, mas também os jurados.

      Sei que só depende de mim. Eu ensaiei muito e estou num bom momento da minha carreira. Sou uma das principais bailarinas da nossa escola, e se não tenho a expressão doce e triste da Eva, tento compensar dando tudo de mim. Sempre levo meu corpo ao limite.

      Não entendo como meninas como Eva e Roberta estão tão nervosas, afinal, vai ser só mais um festival de dança em que vamos fazer o que sempre fazemos. A única diferença é que, ao invés de usarmos figurinos vistosos com pedrarias, só vamos usar collant, meia calça e sapatilhas. E nada mais. Nem calcinhas, pra não marcar o collant.

      Na verdade, só estou com um pouco de ansiedade, que é bem diferente de nervosismo. Isso eu deixo pra sentir faltando meia hora pra ser anunciada. É inevitável. Ele vem de qualquer jeito, por mais que você reze, faça meditação ou cumpra um ritual.

      Mas não é ruim. Pelo menos mostra que você é humana e tem limites pra transcender, e eu sei que tenho os meus. Minha professora sempre diz que garota de sangue frio não serve pra ser bailarina, porque ela não se entrega, não se desnuda, não brilha.

      Fernanda também diz que devemos superar nossos limites aos poucos, subir degrau por degrau e nunca pular uma etapa importante do nosso aprendizado, porque ainda somos jovens e temos tempo.

      Nesse momento, nada disso importa pra mim. Só o que importa é terminar minha corrida (que faço todas as manhãs) e chegar ao Portal. Fazer esse exercício tem me ajudado bastante a fazer com que minha cabeça não entre em parafuso, e também me ajuda a lembrar que eu tenho uma vida fora da escola de balé. Uma vida diferente do glamour dos palcos, é verdade, mas que eu também amo.

      Meu nome é Sofia Christina da Silva. Sou uma garota negra, de 1,65 de altura, e estou usando uma blusa de moletom preta, calça legging branca, polainas pretas e um par de tênis Nike de corrida. Meu cabelo é crespo e volumoso, e está amarrado num coque frouxo, bem diferente do coque caprichado que faço pra fazer balé.

      Por causa da cor da minha pele, meu apelido é Bombom, e eu adoro. Gosto bem mais dele do que meu nome de batismo.

      Moro na linda e charmosa cidade de Campos do Jordão, conhecida pelo frio de montanha e que no inverno, atrai turistas de todo o Estado de São Paulo. Alguns desses turistas estão descendo de vans e fazendo poses em frente ao famoso Portal para fotos de recordação. À medida que me aproximo, vejo que as mulheres estão usando palas, mantas ou gorros para se protegerem do frio absurdo. Dois ou três homens estão com cobertores sobre os corpos.

      Caralho, que frio!, um deles grita. Não é exagero. O termômetro marca -1 grau e uma grossa camada de geada cobre tudo. Como todos sabem, nossa cidade vive do turismo de inverno, não há indústrias aqui, e é no mês de julho que você vê brotar na Vila Capivari gente bonita, de todas as cores, atrás de comida alemã, cerveja artesanal, fondue e pinhão cozido. 

      E como não ficar deslumbrado com os plátanos, suas folhas formando lindos tapetes dourados nas calçadas?

      Parece que estão adorando o frio, mesmo com seus dentes batendo e as mãos tremendo. Mesmo pra nós, jordanenses, o frio da madrugada corta, e seus pés congelam fácil se não calçar um par de meias bem grossas. Os meus só estão quentes por causa da corrida da Vila Abernéssia até aqui, e mesmo assim, logo vou ter que me levantar e me movimentar um pouco pra que meu corpo não esfrie.

O dom de voarOnde histórias criam vida. Descubra agora