Capítulo 2

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      Dou mais uma olhada na reportagem da tv Vanguarda. Os muitos turistas andando pela Djalma Forjaz, pela Praça Capivari. As pessoas ficam mesmo diferentes no inverno, mais elegantes, principalmente as mulheres desfilando com botas, casacos e cachecóis. Para os homens, qualquer blusa grossa e impermeável basta.

      Tenho vontade de convidar minhas amigas pra subir comigo até a Vila Capivari, só pra ver um pouco de gente bonita, e quem sabe, comer um fondue quentinho.

      — O Festival de Inverno começa hoje, né? — pergunto a Gigi, que está do meu lado e também assiste a reportagem com atenção.

      — Sim. Parece que hoje é a Orquestra Sinfônica que vai se apresentar — ela bebe um gole d'água.

      As meninas que ficaram por último no vestiário saem em grupinhos de três ou quatro, e entre elas está a Eva, a ruiva linda e perfeita. Ela me olha com desdém, dá seu sorrisinho com aparelho de dente e sai sem dizer tchau; entra no carro importado do pai. A mãe da Eva é dona de um hotel de luxo na Vila Inglesa, pode comprar tudo o que a perua adolescente quer. Menos caráter.

      — Tô indo nessa também — ponho minha mochila nas costas. — Tchau, gente.

      — Tchau — as meninas dizem em uníssono.

      O calor fora do estúdio é bem gostoso, nem parece que hoje de manhã estava gelado. Mas não dá pra ficar sem blusa. As flores dos jardins das casas, assim como as ervas daninhas nascidas nas fendas e falhas das calçadas, se queimaram assim que a camada de geada derreteu.

      Passo ao lado do trilho pra ver o bondinho vermelho e amarelo descendo da estação Emílio Ribas em direção a Santo Antônio do Pinhal, e recebo cumprimentos com acenos dos turistas. Retribuo com um sorriso.

      No passado Campos do Jordão foi um importante centro de tratamento para doentes com tuberculose antes que alguém muito inteligente tivesse a ideia de transformá-la em destino turístico para casais em lua de mel. Os trens que antes subiam do Vale do Paraíba lotados de doentes pra serem internados nos sanatórios hoje deram espaço pra esses pequenos vagões, bonitinhos, que levam pessoas pra cima e pra baixo.

      Mamãe sorri ao me ver entrando em casa, suas mãos estão sujas de farinha de trigo. Será que vamos ter pão caseiro ou bolo?

      — Oi, melhor mãe do mundo — me aproximo pra que ela beije minha testa.

      — Oi, minha princesa bailarina — ela não me toca pra evitar que eu me suje. — como foi sua aula?

      — Foi ótima — sorrio pegando uma banana da fruteira. — Saltei o grand jeté mais alto da classe e a professora me chamou de canguru.

      — Grand jeté é aquele salto que as bailarinas abrem espacate no ar?

      Por causa da dificuldade dos meus pais de viajarem e da falta de um carro (já que somos pobres), não é sempre que eles podem me ver dançando. Mas sempre peço para uma colega filmar minhas apresentações, pra eles se sentirem um pouco mais próximos.

      — É sim — confirmo.

      — Sempre tenho medo que você se machuque ao pousar — o semblante da minha mãe se fecha. — Só me lembro daquela japonesa que quebrou os dois ossos da perna e teve de parar de dançar¹.

      — Ai, mãe vira essa boca pra lá. — se eu acreditasse em Deus, faria um sinal da cruz.

      — Medo de mãe, meu anjo.

      — Eu não vou me machucar, mãe.

      Obviamente não posso ter tanta certeza das minhas palavras, porque se machucar no balé faz parte do jogo. Uma torção, uma distensão muscular, um rompimento de tendão de Aquiles ou de um ligamento cruzado do joelho. Todos os dias uma bailarina jovem encerra uma carreira e tem seu sonho destruído por causa de uma lesão séria, mas por mais que eu saiba que não estou isenta disso, não consigo me imaginar sofrendo algo sério.

O dom de voarOnde histórias criam vida. Descubra agora