Capítulo 27

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      Tenho seguido à risca um ritual que adotei desde que deixei Campos do Jordão para morar em São Paulo: responder mensagens das pessoas que eu amo ou ligar para elas (neste último caso, meus pais e a Gigi).

      Me pergunto algumas vezes como eles podem ser tão sem noção, me ligando quando ainda estou na última fase do meu sono. Primeiro foi meu pai, depois minha mãe. Contei detalhes de como foi meu primeiro dia em Posadas, falei sobre a comida, e quando minha mãe perguntou se nenhum argentino me ofendeu por causa da minha cor, revirei os olhos.

      — Se eu tivesse sido vítima de racismo, a essa hora eu estaria presa, mãe.

      Ela riu e voltou a me recomendar pela décima vez que tomasse cuidado.

      — Pode deixar. Beijo.

      É incrível como pessoas de fora têm mais conhecimento do que fazemos que nós mesmos. Imagine que Gigi assistiu pela internet a primeira noite de competições (depois que ela saiu do estúdio de dona Fernanda, claro) e me viu dançando.

      Fiquei muito feliz por ela ter falado que minha evolução foi incrível e que eu tô dançando com uma técnica mais limpa. Até me esqueci que estava cansada e que queria dormir mais um pouco. Amigas têm mesmo esse poder de mudar o humor da gente.

      Havia ainda mensagens de áudio de Pamela, Jaqueline e Léo. Respondi a todas elas. Por enquanto não recebi nada do Odin. Pra ser sincera, não sei por que estou esperando algo dele, mas a ausência do som da voz dele me angustia.

      Meu Deus, não faz nem tanto tempo que conversamos.

      Deixo o celular do meu lado, me sento na cama, agora atenta ao ambiente que me cerca. O quarto grande, com a lâmpada em formato ovalado no teto. O armário cor de mogno. O criado mudo ao meu lado, com folhetos de pizzarias e restaurantes.

      Minha amiga está despertando do mundo dos sonhos, bocejando alto, e tenho uma pontada de inveja por ela conseguir dormir sem nenhuma interrupção. Pelo menos ela é normal e o cabelo ruivo está embaraçado.

      — Buenos días, guapa — ela sorri.

      — Buenos días — respondo. É uma das poucas coisas que sei falar em espanhol. Triste.

      Jordana massageia as têmporas, põe a mão em frente à boca e assopra, para se certificar se está ou não com mau hálito matinal.

      — Que horas são? — ela está desorientada e não vê que seu celular está ao lado do abajur.

      Apanho meu aparelho novamente, aperto o botão do lado direito para que a tela se ilumine.

      — Seis e meia.

      — Ah! — minha colega de quarto se deixa cair de costas na cama.

      — Tão cedo ainda, mas se a gente não levantar logo, não dá pra passear.

      A ideia de fazer um tour pela cidade me agrada bastante. A gente não viu muita coisa ontem por causa da urgência de chegar ao Parque del Conocimiento, mas ainda é cedo e temos tempo de conhecer lugares legais.

      Se a bailarina de cabeça pelada e o bailarino rei da ironia não estiverem de ressaca, é claro.

      — Vamos tomar café da manhã aqui? — pergunto, ao sentir minha barriga enviando sinais de que estou com fome.

      Jordana morde o lábio inferior, pensativa.

      — O legal de estar em Posadas é conhecer um bom café. Claro que vamos tomar um bom desayuno numa padaria.

O dom de voarOnde histórias criam vida. Descubra agora