A praça da cidade, onde desembocavam os portões da cidade, contrastava em tudo com a mata e o castelo, ambos silenciosos e vazios. Era, pelo contrário, barulhenta e confusa, misturando os gritos dos vendedores com os das pessoas que viam as suas bolsas de dinheiro desaparecerem com uma das crianças que corriam velozmente entre os pés dos mais velhos.
O nortenho agarrou na sua bolsa com força e tentou avançar por entre a multidão de vendedores ambulantes, compradores interessados e simples transeuntes que se formara ali.
Depois de muito tempo a empurrar, barafustar e pisar, conseguiu atravessar a praceta, entrando num emaranhado de ruelas que não conhecia, há procura da estalagem onde deixara, nessa manhã, o cavalo e todas as suas coisas.
Meteu por uma ruela à esquerda e por outra à direita, e por mais umas tão pequenas que quase não cabia e chegou a uma pequena praça sem grande movimento, que logo reconheceu, pois uma das casas tinha a tabuleta porque ele procurava: "Estalagem do Cavaleiro".
A noite já começava a cair, por isso Giánnis decidiu passar a noite ali e partir na madrugada seguinte, quando a cidade ainda tivesse pouco movimento.
Entrou na salinha que servia de sala de pasto aos hospedados e sentou-se numa das toscas cadeiras de madeira, em frente a uma mesa igualmente mal feita.
Viu chegar a dona da hospedaria, a quem, sobre o efeito do álcool, tinha contado da sua carta para ir ao castelo, coxeando, com uma taça de barro entre as mãos, de onde saía fumo. A senhora pôs-lhe a taça de água quente com legumes e pão, o que costumava servir aos seus hóspedes, e sentou-se numa cadeira da mesa do caçador de recompensas, curiosa para ouvir o que ele teria para contar sobre o que ouviu no castelo.
-Então... - começou ela, mexendo as mãos no colo - Como é que correu?
-Bem, eu acho. - murmurou o caçador de recompensas, encolhendo os ombros enquanto sorvia mais uma colher do seu caldo.
-Para que é que te queriam lá? - indagou ela, desta vez mais diretamente.
-Para me oferecerem mais um trabalhinho - respondeu ele, sem tirar os olhos da sopa que comia avidamente.
-Que trabalhinho? Não nos queres contar? - interrogou um velho de barba pessimamente feita que estava sentado sozinho na mesa do lado e ouvira o pouco que eles já tinham conversado.
-Segredo de estado! -afirmou o caçador de recompensas, continuando a comer a sopa.
-E aceitaste? - ao ver que o seu hóspede não respondia, a mulher incitou ansiosamente - Diz lá o que é que te queriam?
Porém, mesmo com os pedidos dela, o homem manteve silêncio. Então, decidida a mudar de estratégia, a mulher levantou-se com visível esforço e coxeou até ao balcão, de onde tirou uma garrafa empoeirada e com vestígios de algumas teias de aranha de vinho, que, ao voltar, pôs em cima da mesa com estrondo, chamando a atenção dos que comiam a sua refeição calmamente.
-Agora come a tua sopa, bebe o teu vinho e conta-nos a tua história! -ordenou ela, com um sorriso quase vitorioso na cara suja.
Giánnis olhou para ela com um sorriso matreiro nos lábios e, agarrando na garrafa, tirou a rolha e bebeu um trago grande.
-Vais contar ou não? - interpelou outro dos homens que seguiam a conversa, desta feita um com um sinal enorme na bochecha esquerda.
-Tive uma audiência com a Imperatriz, -contou - porque o Imperador está doente. Acordámos, pelo trabalho de que ela me encarregou, doze mil drattos anuais e o condado de Agiou.
Toda a sala começou num alvoroço,imaginando aquele homem que tinham em frente conde de Agiou, com um rendimento anual maior do que o que eles tinham em doze anos e gozando, chamando-lhe "Vossa Senhoria" e coisas do género, das quais o visado apenas se riu.
Acabou por ser a dona da hospedaria, porventura a mais curiosa, a pôr ordem na sala, mas, quando o conseguiu fazer, já estavam todos ao pé daquela mesa, à espera para absorver as palavras do nortenho, que continuava calado enquanto avaliava o seu público.
Vendo que ele não voltava a falar, a única mulher ali presente incitou:
-Vá, começa! Diz lá quem é que tens de matar desta vez!
O homem sorriu de novo e abriu a boca para falar quando uma voz feminina doce e aflautada se antecipou:
-A Dama dos Corvos! Quem ele tem de matar é a Dama dos Corvos!
Todas as pessoas olharam na direção da misteriosa voz, mas nada sobrou dela para além do crocito de um corvo e de um bater de asas, que puderam ser ouvidos graças ao silêncio que se instaurara na sala.
Depois de uns momentos em que não se ouviu um pio sequer, a mulher da hospedaria, a pele, agora branca como a cal contrastando com a sujidade do seu rosto,, perguntou, a medo:
-O... O que é que foi aquilo?
Giánnis, sem saber bem o que dizer, manteve-se calado, ainda com a boca meio aberta, os olhos escancarados e o coração a bater rápido demais.
-Acho que todos sabemos quem era... -murmurou baixinho o homem da barba mal feita, como se falar baixo o pudesse salvar da ira dela.
Os outros acenaram lentamente com a cabeça, sem fazer barulho. O único som que se ouvia na estalagem era, naquele momento, as janelas a baterem por causa do vento que se levantara e o bater descompassado do coração do caçador de recompensas.
-A Dama dos Corvos -murmurou ele, repetindo o que a voz dissera e ainda em estado de choque.
Um arrepio percorreu a espinha dos presentes ao ouvir novamente a simples menção desse nome e logo, no tom baixo de quem conta uma história de terror, começaram a falar do que sabiam sobre ela.
-Ouvi dizer que ela rapta crianças das aldeias mais próximas para alimentar os seus corvos. -explicou um dos homens, o do sinal grande na bochecha.
-E eu, que as rapta para as devorar depois. E que vive numa caverna cheia de ossos e cadáveres de crianças. -adiantou outro com uma cicatriz na sobrancelha e o lábio meio levantado.
-Diziam na minha terra que ela se pode transformar em corvo e voar por onde quiser sem ser vista. -explicou outro, amedrontado.
-Eu também ouvi isso tudo, mas algo que te interessa sobretudo a ti, Giánnis - afirmou a dona da hospedaria, todo o seu avantajado corpo a tremer sem parar. - Ela é imortal! É uma empresa sem qualquer hipótese de ser bem sucedida, por isso arranja outra coisa qualquer para fazeres e admite que é impossível.
O caçador de recompensas ouviu isto, mas sem querer acreditar nas palavras da mulher, mentiu para preservar a sua honra:
-Eu não tenho medo dela, e isso são apenas rumores que vocês ouviram contar a um intrujão qualquer. É mentira, e vocês vão ver isso quando eu a matar e trouxer a cabeça dela.
Dizendo isto, e talvez um pouco alterado pelo gole enorme de vinho que tinha bebido, bateu com a mão na mesa e, levantando-se, dirigiu-se às escadas de madeira, dizendo:
-Passo cá esta noite, mas amanhã vocês vão ver, vou sair de madrugada e quando voltar, venho com a cabeça dela!
Dizendo isto, subiu as escadas até ao quarto onde estava alojado, a fim de descansar até ao dia seguinte.
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A Dama dos Corvos
FantasyA Dama dos Corvos é uma poderosa feiticeira, que há anos se esconde na floresta de Skípto. Uns dizem que ela é canibal, outros que rapta pessoas para alimentar os corvos, algumas que as leva apenas para ter o prazer de as matar, mas a verdade é que...