Capítulo IV

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Perto das cinco da manhã, Giánnis saiu da estalagem, deixando em cima da bancada do bar o pagamento da curta estadia e levando o seu cavalo, Mesrur, das cavalariças.

Atravessou a cidade, ainda silenciosa, até à porta principal das muralhas que a circundavam.

Estacou ali. Já se via o sol nascer e aproveitou para, enquanto observava, reflectir no que ia fazer. Se as lendas fossem verdade, ou mesmo se apenas metade delas o fosse, aquele seria o mais difícil e perigoso trabalho de todos os que já empreendera. Mas também o melhor pago, pois se o conseguisse concretizar nunca mais teria de trabalhar na vida. Para viver de forma normal e confortável, doze mil drattos chegavam e sobravam, e com todos os rendimentos das propriedades de Agiou, as terras mais férteis das que ainda pertenciam ao Imperador, podia viver como um nobre.

Saindo da cidade pela porta já aberta, ainda fitando o nascer do sol, montou Mesrur e avançou calmamente, a passo, pelas planícies que rodeavam a capital do império e suposto berço da nação, já que se dizia que o primeiro imperador de Dayin, Arrayon I, nascera no pequena povoado que era a grande cidade na época.

Giánnis chegou ao sopé da montanha em cujo planalto mais alto ficava a floresta de Skípto, lar da Dama dos Corvos. Havia dez ou onze aldeias por ali, mas só três é que estavam habitadas, porque as pessoas com crianças tinham fugido, devido aos rumores sobre a Dama dos Corvos, e a população deixou de se renovar, acabando as localidades abandonadas. As únicas três que sobravam, ainda tinham gente porque um imperador anterior decretara que quem lá vivia não poderia sair a não ser para comprar e vender produtos, e como há muito tempo que a feiticeira não dava sinais de si, as pessoas não queriam fugir e expôr-se à pena estipulada pelo decreto imperial, o corte de um dos membros e a exposição à humilhação pública nas três aldeias subsistentes naquela montanha.

Começando a subir a montanha por uma estrada de terra batida, traçada por entre os socalcos para as carroças carregadas de mercadorias que subiam e desciam todas as semanas, o caçador de recompensas parou um pouco, cansado tanto pela viagem extenuante como pelo calor abrasador que o torturava continuamente. Olhou em volta, procurando uma árvore, mas ali, no meio dos socalcos da vinha, não havia nada que lhe pudesse proporcionar alguma sombra.

Colocou a mão na testa para tapar o sol, procurando novamente, e avistou um casebre meio destruído no meio das vinhas, mas de onde saía, pela chaminé, algum fumo.

Voltou a montar e dirigiu-se para lá o mais rapidamente que o seu cavalo conseguia sob aquele sol tórrido. Chegou à pequena construção passada quase meia hora e bateu à porta. Foi abrir uma mulher magra, vestida pobremente, mas mesmo assim sem qualquer sinal de sujidade, que o olhou com estranheza, perguntando-lhe rispidamente:

-O que é que faz aqui?

Giánnis esperava uma receção menos assertiva e ficou atrapalhado. Apesar disso, respondeu depressa:

-Vinha pedir abrigo para o sol. É impossível andar por aí com este calor, e não há nenhuma árvore no caminho.

Parecendo compreender, ela disse, de forma mais afável mas igualmente dura e firme:

-Pode entrar, se quiser, mas aviso-o de que não temos nada para oferecer.

A mulher abriu a porta um pouco mais, chegando-se para trás de forma a que ele pudesse passar, o que Giánnis fez assim que prendeu Mesrur numa argola no exterior da casa.

O caçador de recompensas não imaginara encontrar uma cena tão estranha. Havia sete crianças, todas de cabelos azuis claros, sentadas em fila junto à uma parede a conversar e a brincar, pelo que parecia, e uma oitava numa posição estranha ao pé da lareira. Deviam ser filhos daquela mulher. Todos estavam, ao contrário da senhora, bem alimentados, com caras saudáveis e rosadas. As paredes, de pedra escura, pareciam estar prestes a cair em cima dos miúdos, que continuavam a conversar como se nada fosse. A casa não tinha nenhum móvel, excepto um monte grande de palha a um canto e um caldeirão a deitar fumo, debaixo da chaminé, ao pé da rapariga. Notava-se também no chão de terra os vestígios de uma fogueira, onde provavelmente se tinha feito um assado, como demonstrava o espeto encostado a uma das paredes.

Avançando para dentro da casa, o caçador de recompensas viu o que a criança fazia junto ao caldeirão: criava, com a sua mão, uma chama que aquecia a comida que devia estar lá dentro.

Todas as crianças o observaram, mas nenhuma pareceu ficar muito surpreendida com a sua vinda, pois rapidamente recomeçaram as suas conversas e brincadeiras.

Giánnis encostou-se à parede o mais longe possível da chaminé para estar mais longe do calor e da rapariga. Nunca tinha ouvido falar de que, em todo o império, houvesse alguém mágico sem ser, claro, a Dama dos Corvos.

Passados alguns minutos, o fogo que se elevava da mão da miúda mágica cessou e ela agarrou no enorme caldeirão, com visível esforço, levando-o para o centro da sala. As crianças levantaram-se, sempre a falar animadamente, e sentaram-se numa roda em volta do objeto de metal. A mulher, que se sentara também com as crianças, fez um gesto chamando o caçador de recompensas, que se sentou na roda ao lado dela. Deram todos as mãos e o homem, embora relutante, fez a mesma coisa, já que a senhora e o rapaz ao seu lado lhas estenderam. Todos, excepto os dois adultos, começaram a pronunciar em coro uma bizarra ladainha, numa língua estranha e desconhecida. Repentinamente, os cabelos das crianças começaram a brilhar e a elevar-se no ar e os olhos a escurecer, até ficarem completamente negros, como que preenchidos por uma noite sem estrelas. Quando terminaram e largaram as mãos, tudo voltou num instante a como estava antes.

Giánnis retraiu-se. Se não estava à espera de encontrar uma criança mágica, ainda menos esperava que as oito o fossem. Engoliu em seco, tentando não demonstrar o seu temor, mas sentia-se aterrorizado e só o calor abrasador do sol o fez permanecer naquela casa.

Uma das crianças fez aparecer de algum lado dez taças de barro pintadas e pô-las em frente a cada pessoa. A mulher serviu em cada uma das taças o guisado, pondo muito pouco no seu e enchendo o das crianças mais do que seria necessário. Quando chegou a vez de Giánnis, ela parou e disse-lhe:

-Avisei-lhe de que não há o suficiente para si, por isso espero que tenha trazido consigo o que comer.

-Mas... - contestou ele. -O caldeirão estava cheio, é impossível já ter acabado.

-Veja por si próprio - indicou ela, inclinando o caldeirão e mostrando-lhe que não sobrava nada.

Surpreendido pela rapidez com que aquela refeição acabara, o caçador de recompensas abriu a sua bolsa e tirou de lá a sua humilde carne seca embrulhada em panos. Comeu-a em silêncio, ouvindo as animadas e inocentes conversas e jogos que os miúdos não paravam de fazer.

Em pouco tempo, todos terminaram e levantaram-se. A feiticeira juntou-se aos outros miúdos e um rapazinho saiu do grupo, levando o caldeirão para a lareira e tomando o papel que a rapariga fazia antes.

Quando uma brisa fresca passou pela porta aberta, a mulher disse-lhe:

-Agora está no momento de deixar a nossa casa!

Agradecendo, Giánnis saiu, reparando que o tempo amenizara e que, naquele momento, a temperatura estava muito melhor e o Sol não o queimava. Desprendeu Mesrur da argola e, montando nele, seguiu o seu caminho por entre as vinhas.

A Dama dos CorvosOnde histórias criam vida. Descubra agora