_ O amor é aceitar a ideia de que o outro também peida...
_ Como?!?
_ Acho que eu te amo, sabia?
_ Uau, é meio insólito de se ouvir, mas assim, também te amo, minha gueparda estranha! Ah, e acho que você precisa de uma folga, que tal?
_ Você pode estar certo. Vamos ao festival?
_ Na próxima, prometo!
Após duas semanas bastante trabalhosas no boticário, Aurora despediu-se de Dario e foi para Xochimilco, para se consultar com alguma xamã, por ocasião do festival em honra a Xochipilli. A cidade era essencialmente rural, situada ao lado de Tenochtitlán, como uma espécie de Veneza agrária, construída em um lago de água doce, com poucas habitações. As ilhas possuíam tamanhos variáveis, entre 400 e 8.000 m² e eram construídas e refeitas com o limo do fundo do lago; nelas se cultivava milho, feijões, pimentas, abóboras, jicamas, pimentões, tomates e algumas plantas vindas de fora, sobretudo repolho, cenoura, beterraba e cebola. Entre essas ilhas existem uma série de canais onde os peixes, rãs, moluscos e crustáceos eram abundantes. Eventualmente, nelas criavam-se patos e chuis. Entre as ilhas usadas com propósitos agrícolas, aqui e acolá existiam algumas que possuíam função residencial, formando pequenas vilas com 12 a 40 casas cada. Perto das margens há uma ilha maior, que congrega o templo principal, edifícios públicos, estalagens, oficinas de artesanato e manufatura, restaurantes, a rádio comunitária e algumas residências das famílias mais antigas, bem como a biblioteca.
Aurora se instalou em uma estalagem apenas para mulheres, onde estava sendo preparada a virgem escolhida para representar a deusa Xochiquetzal, e que, portanto, seria sacrificada, para que seu coração fosse oferecido a Xochipilli e um sacerdote pudesse vestir sua pele até o ano seguinte. De modo geral, quase todos os sacrificados eram homens, e esse era um raríssimo caso em que a pessoa escolhida era uma mulher, de modo que a honra era muito grande, tanto para ela quanto para sua família e o local de onde ela viesse, o que explicava a razão pela qual a honraria era tão disputada.
No mesmo dia, à tarde, conseguiu marcar uma entrevista com uma sábia, para a manhã do dia seguinte. Levou o pulque cerimonial, como convinha, bem como algumas moedas de prata e uma estatuazinha de jade, que recebera em pagamento de um pescador maia que estivera em seu boticário. Essa etapa era obrigatória para quem quisesse ser recebido por alguma sacerdotisa do templo.
Era o que os astecas chamavam de "abrir o coração", felizmente para ela, de maneira não literal. Chegando, não pôde deixar de perceber que a sábia, na verdade, não era uma anciã; na verdade, tinha quase a idade dela.
_ Então, você é a sábia?
_ Olha, já me acusaram de muita coisa, mas de sábia é a primeira vez. Eu sou a Itzi. Você deve ser Aurora, não é?
_ Sim, sou eu. Eu esperava que você...
_ Fosse uma velhinha? Não, meu bem. As anciãs aconselham apenas as que querem se casar e as grávidas. Seu caso é mais facilmente resolvível, eu espero. Inclusive, trouxe as coisas todas?
_ Trouxe sim...
_ Então, a estatueta é o meu pagamento: coloco para vender na lojinha do templo e ganho minha vida; o pulque a gente bebe "cerimonialmente"...
_ E as moedas?
_ A gente usa na taverna, flor. Vamos?!?
_ Enquanto bebiam pulque no bar das mulheres, as duas conversavam, e Aurora foi instada a contar sua história. Ela falou de sua infância difícil na Inglaterra, de como perdera os pais ainda adolescente e fora abusada por parentes e mercadores, da sua luta para abrir o boticário, sua ida até a Bretanha e seu relacionamento com Dario. Falou durante longos minutos sobre o que a afligia, até a oitava hora, quando as duas comeram pão de milho com chile e tomaram a "tequila sagrada". Itzi então lhe disse:
_ Quanto bafão! Agora vamos refletir sobre isso juntas, querida. Primeiro, perder os pais é uma barra, e para sobreviver, você fez o que tinha que ser feito. Sabe disso, não sabe?
_ Eu me sinto meio suja...
_ Por escolher lutar e viver? Moça, eu não tenho metade da sua força! Olha, você foi tudo.
_ Mas nem sempre fiz coisas para sobreviver. Algumas eu fiz porque, bom, eu queria uns ilícitos, umas festas...
_ Seus pais eram cristãos, não eram?
_ Eram sim.
_ E eles nunca te contaram que Jesus curtia umas festas, tomava uns vinhão? E que muito do que Ele fazia era ilícito, tanto pela lei romana em voga, quanto pelas regras dos fariseus? Sem falar que, né, porra, ele se sacrificou para que você pudesse ser perdoada. Quer mesmo deixar seu Deus triste? Recusa o perdão só porque não o pediu?!? Deixa disso, você era jovem. Vem, vou te pagar um suco gelado de tangerina para você sentir o meu perdão!
_ Nunca tinha pensado nas coisas por esse ponto de vista.
_ Eu sempre busco merecer as minhas estatuetas. Seu problema, de modo geral, é que você confunde as coisas...
_ Como assim?
_ Por exemplo, você confunde mágoa com culpa. A mágoa é um espinho, a culpa é o título que recebe quem você escolheu condenar por ter pisado nele, entende?
_ Acho que sim, preciso pensar um pouco mais...
_ Todas precisamos! Inclusive, não creio que você aprenderá apenas respondendo coisas, de toda forma. É importante que você faça perguntas, para si mesma, para quem você ama, para as coisas todas. Mas me diga, o que você é sem o amor?
_ Não entendi a pergunta...
_ Deveria; pouca gente vem aqui porque está conformada; aliás, ninguém nunca veio. Quando não é a inércia, é a paixão que move. Pelo que você é apaixonada? Pela sua culpa? Ou pela dos outros? Porque, às vezes, o simples perdão, apenas, não basta, sabe? O fato de ter se livrado de culpar alguém não significa que isso te libertou da mágoa que te consome e que fez com que as sacerdotisas sonhem com girassóis. Sua alma não pode permanecer atenta ao passado, pois é o futuro que te aguarda e que você busca.
_ Pode ser isso mesmo; mas falando sobre minha paixão, o que me move é a ideia de produzir o melhor chocolate dessa terra, mas não me deixam...
_ Olha, eu sugeriria que você não se frustrasse tanto com isso, porque a vida tem dessas interseccionalidades. Às vezes, o que acontece é que o seu tempo simplesmente ainda não é o tempo das coisas. Relaxe; goze no intervalo, inclusive.
_ Como assim?
_ Olha, imagine que você tenha disponível 4 horas livres durante o dia, sempre na parte da manhã, e outra pessoa tenha 5 horas, mas sempre na parte da tarde. Seria como se vocês não tivessem tempo uma para a outra, mas não há maldade alguma envolvida, apenas ocorre que ainda não é o tempo de vocês, compreende?
_ Sim, eu compreendo. Muito obrigada, Itzi!
As duas se despediram como se fossem velhas amigas, e Aurora sentia-se bem mais leve. E, claro, bastante bêbada também, e até mesmo com ideias. Havia na cidade muitos homens e mulheres, muita gente bonita, mas todos estavam de jejum sexual por conta do festival, então ela resolveu conhecer melhor a cidade e foi até a casa da névoa, onde ficavam os corpos dos virgens sacrificados ao Deus, bem como o mercado em que se vendiam plantas psicotrópicas e cogumelos alucinógenos de todo o México e países vizinhos, alguns dos quais Itzi lhe recomendara comprar. Fez as compras recomendadas, comprou os pães de milho que eram o único alimento permitido durante o festival e se matriculou em um curso de uma lua de duração, a ser dado na casa das bruxas local, logo após o fim do festival, sobre as plantas e cogumelos dos sonhos.
Para que Dario não se preocupasse, enviou um telegrama no mesmo dia, comunicando sua decisão e o instruindo sobre os negócios pendentes do boticário. Como não confiava muito na diligência dele, também enviou um telegrama para a sua ajudante. Ela era, no fim das contas, precavida.
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Aztlán: como tudo recomeçou!
Historical FictionUma série de eventos permite que uma engenheira volte ao começo do século XIX, ensine e aplique tecnologia de alto nível e ajude vários povos a reescrever a História. O México se torna uma das potências mundiais, mas as antigas religiões do continen...