Um

476 41 8
                                    


- Minha cerveja está choca.

Me virei, dando de cara com meu cliente insatisfeito. Bart era seu nome, um homem parrudo de cabelos loiros e ralos. Um frequentador assíduo da taverna do meu pai.

Seus chiliques também eram bem frequentes, para a minha irritação.

- Trarei outra, senhor - abaixei a cabeça de maneira respeitosa. Não que eu respeitasse um bebum qualquer, mas não queria problemas. Minha bochecha ainda doía pela bofetada que havia levado mais cedo por conta de clientes insatisfeitos. Aquela era uma noite movimentada, então já havia aceitado a ideia de que seria constantemente atormentada pelas horas seguintes

Recolhendo a taça cheia, virei-me em direção à cozinha. Meu pai não ficaria satisfeito pelo desperdício, mas cliente é cliente. Pelo menos dessa vez a culpa não cairia sobre mim.

- Trate de vestir algo decente da próxima vez - disse Bart, dando um tapinha na minha bunda que me fez tropeçar.

Meu rosto queimou, sua intrusão reverberando por todo o meu corpo. Maldito, xinguei, precisando de toda a minha força para não esbofetear seu rosto, não o fazer comer o vidro de sua taça.

Respirando fundo, voltei a seguir até a cozinha, meu orgulho me impedindo de olhar para trás. Não que fosse a primeira vez, os homens não sabiam se comportar como seres humanos ao verem uma mulher de calça. Ainda assim, não conseguia impedir que meus olhos lacrimejassem de indignação.

O gosto de sangue inundava minha boca; estava pressionando minhas bochechas entre os dentes de modo que eu não gritasse de ódio.

- Que o Devorador de Almas te engula, desgraçado - rosnei baixinho, serpenteando entre todas aquelas mesas lotadas. Meu pai, um homem pálido atarracado, me olhava através do balcão da entrada. Tentei ao máximo deixar meu rosto com cara de paisagem.

- Seu pai chupou limão - disse Anika, a cozinheira baixinha. Ela revirava um caldeirão de caldo, mexendo com cuidado.

Anika não era do tipo que se intimidava com nada, nem mesmo com a rabugice do meu pai. Sempre encontrava uma maneira de transformar qualquer situação em algo menos sufocante. Mas naquele momento, seu comentário não aliviou a sensação de nó na minha garganta. 

Estalei a língua, esvaziando a taça para logo preenchê-la por uma nova bebida. Respirei fundo, tentando controlar a raiva e a vergonha que pulsavam dentro de mim.

- Me conte uma novidade - resmunguei de volta, olhando o salão lotado pela janela.  

Ela olhou para mim por cima do ombro, com uma sobrancelha arqueada. 

- Você não deveria aceitar esse tipo de coisa, menina. Esses porcos só fazem isso porque acham que podem.

Engoli em seco.

- Se eu não aceitar dele, terei de aceitar do meu pai - rebati. Enchi o copo até o topo, praguejando quando a espuma trasbordou. - E, ao menos, com Bart eu não moro.

Anika balançou a cabeça, desaprovando. 

- Seu pai só age assim com quem sabe que não irá retrucar - disse.

Eu queria rebater, dizer que ela estava errada, mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, pressionei o pano contra a borda do copo, limpando a espuma transbordante enquanto meu coração batia mais rápido. Era fácil para Anika dizer essas coisas; não adiantava discutir com alguém que não andava em meus sapatos, eu só me irritaria mais. Olhei pela janela da cozinha, observando o salão lotado. 

- Está cheio demais para uma noite de inverno.

Anika temperou o caldeirão, mexendo mais um pouco.

- Espero que seja pelo meu caldo.

Ri, sem humor algum.

- Mais fácil ser pelo calor do álcool - retruquei, empurrando a pesada porta da cozinha, já com a taça cheia novamente. O calor e o cheiro de comida da cozinha foram substituídos pelo ar mais pesado e pela cacofonia de vozes que enchiam o salão.

Não que eu estivesse em condições de reclamar. Eu era sortuda por ter um "emprego", mesmo que este pagasse mal. Estamos vivendo uma época em que apenas poucos sortudos podem se manter, devido às grandes taxas que o Devorador cobra de todos. Aguentar um bêbado abusado é bem melhor do que aguentar o frio de Morioh ou a fome desgastante.

Mesmo trabalhando desde os treze nesse lugar imundo, não me via um dia parando de trabalhar. Talvez eu vivesse como meu pai: decrépita até a velhice, aguentando bêbados canalhas em troca de uma miséria. Mas, obviamente, eu jamais bateria numa filha minha.

Amanhã era véspera do Natal - e do meu aniversário. Infelizmente, não podíamos nos dar ao luxo de comemorarmos. Precisaria trabalhar por mais 24 horas se quisesse quitar tudo que meu pai deve ao Devorador de Almas.

Eu não lembro de quando eu me dei conta do Devorador e de suas mãos de ferro sobre Morioh, mas eu sei o que todo mundo sabe: ele é um homem recluso e poderoso que mora no pico da cidade, além dos muros de vidro. Ele tem poderes inimagináveis e é extremamente respeitado. Até pelo meu pai, um homem que não respeita ninguém. Por aí correm boatos de que ele aprisiona a alma de seus inimigos num lampião que ilumina a sebe de sua residência.

Para mim é tudo besteira, se você quer saber. Infelizmente trabalho o inferno do dia inteiro para suprir a fantasia de superioridade de um homem que jamais vi. Apesar da minha opinião, serei grata se não estiver aqui para vê-lo da próxima vez que vier fazer suas cobranças.

Corrompa-me { Jotaro Kujo AU }Onde histórias criam vida. Descubra agora