Alguém ao longe

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O maquinista demorou mais que o habitual para furar a passagem, então tomei a liberdade de olhar um instante pela janela. Estava bem cinza lá fora, a rajada de frio entrava pela porta do trem, então me apressei até o assento mais longe dali, um que sempre costumo pegar no fundo do vagão.

Mas hoje foi diferente, invés de sentar e assistir algum filme que deixo salvo no meu computador, tive que lidar com a presença de alguns adolescentes bem escandalosos que estavam do outro lado do corredor. As duas garotas estavam em silêncio, mas os cinco meninos não paravam de gritar pela janela.

Será que eles não entendem que tem gente nessa droga de trem que só quer paz durante a viagem porque passou o dia trabalhando para sustentar sua vidinha miserável?

Ei, Shun, olha esse espação aqui em cima! — o ruivo subiu no assento para abrir o compartimento das bagagens — Aposto que você não entra aí dentro!

— Ah, você quer ver?! — o tal do Shun responde e começa a pendurar os braços nas paredes.

Mas no que eu estou pensando? São adolescentes, eles não sabem de muita coisa.

Enquanto observava a cena, percebi que não estavam acompanhados por nenhum adulto. Já está bem escuro e essa não é a hora que crianças deveriam estar num trem.

— Ei, garotos, vocês tem realmente certeza disso? — a garota loirinha fala quando o maquinista avisa que o trem está prestes a sair.

— Não precisa ter medo, Ami. Shun sabe para onde nos levar, vai ser incrível! — agora todos eles já estão sentados e conversando entre si como pessoas normais — E se qualquer coisa acontecer, vamos estar juntos, está bem? Eu não vou sair de perto de você.

Ela pareceu mais calma agora que o amigo do Shun segurou sua mão, os dois então começaram a apontar através do vidro e me fizeram perceber que o céu estava bem estrelado quando olho , só havia reparado nos prédios cinzas da estação de trem.

No fim, tudo não passava de inveja. Sete adolescentes da capital pegando um trem à meia noite para uma viagem sem rumo pelo Japão. Olhando de fora, pareciam estar nas cenas de um filme, vivendo intensamente os melhores anos de suas vidas. E eu só um velho amargurado voltando ao interior para trocar as fraldas da avó.

— Tadaima. — chego, arrastando as pequenas malas para dentro de casa.

— Tadashi! Okaeri! — minha mãe me recebe com o abraço apertado de sempre — Como foi a viagem? Como estão as coisas em Tóquio? Já conseguiu recuperar o dinheiro do aluguel?

— Como sempre.

— Mas que parte?

— Todas. Tudo está como sempre, mãe.

— Mãe! — ela grita quando escutamos talheres caindo no chão — Não mexa na prataria, já disse que eu coloco seu jantar!

— Então venha logo e deixe esse pobre homem em paz, você é casada! — minha vó responde com a mesma voz rouca de sempre — E ele é muito novinho para você, minha filha.

— Por Deus, é o meu filho! — ela sai correndo para apagar o fogão — Não reconhece mais o seu neto?

— Tadashi? É você?

— Oi, vovó. — agacho para lhe dar um beijo no topo da cabeça depois de botar a mala para dentro de casa.

— Meu rádio quebrou de novo. Precisa consertar direito dessa vez, ouviu? Sua mãe não sabe fazer essas coisas e preciso do meu rádio funcionando!

Ela só deve ter desprendido a antena do aparelho igual da outra vez - as duas vieram me visitar e ela levou o rádio até a cidade apenas para que eu ajeitasse.

— Claro que sim. Vou guardar as malas e já pego para consertar.

— Não vai jantar, Tadashi? — pergunta minha mãe.

— Como o que sobrar, quero tomar um banho primeiro.

Na realidade, só queria me trancar no quarto por um segundo e ter tempo de recarregar minha bateria social para lidar com minha família.

Finalmente paro de contorcer meu rosto nesses sorrisos exagerados que tenho que fingir porque não sei explicar para ninguém o que tem de errado com minha vida.

Então deixo meus músculos relaxarem um pouco, logo vou precisar deles de novo, já que essa foi uma semana péssima, uma viagem tão horrível quanto e sei que será um fim de semana igualmente pior.

— Querido, seu amigo ligou mais cedo. — minha mãe avisa quando estou de volta à cozinha — Pediu que fosse visitá-lo enquanto estivesse na cidade, deixei o endereço anotado na porta da geladeira.

— Ah, verdade, prometi que iria visitar quando viesse aqui.

— Não vou trabalhar amanhã, então fico com sua avó. Vá ver seu amigo.

— Mesmo? Obrigada, mãe. — apanho o papel com o endereço escrito — Mas onde fica isso?! Será que tem ônibus até lá?

— Não tem. É um pouco afastado da cidade.

— Posso pegar o carro, então?

— Poderia, se não estivesse quebrado. Parou de funcionar na mesma semana que o liquidificador.

— Será que tem algo nessa casa que ainda funcione?

— Não olha pra mim. Pergunte ao seu pai, ele quem disse que consertaria tudo quando voltasse pra casa.

— E quando vai ser isso?

— É uma ótima pergunta.

Na tarde do dia seguinte, liguei o GPS do celular e saí pelas ruas rezando para não me perder. Mas nunca fui muito agraciado pelos deuses, já que o mapa me levou para onde nunca estive em todos os 18 anos que morei aqui.

— Ótimo, ainda por cima sem sinal.

Ando mais um pouco na esperança de encontrar alguém que possa me dizer o caminho, mas não encontro uma alma viva sequer em um raio de dois quilômetros.

Estou prestes a desistir e esperar minha família espalhar os cartazes de desaparecido quando finalmente encontro alguém ao longe, em uma pequena ponte de pedra que cruza um rio estreito bem no meio da rua.

— Ei! Tem alguém aí? — pergunto porque ele continua parado sentado sobre o parapeito, talvez não tenha me percebido — Você pode se machucar, por que não desce daí?

E foi quando aconteceu. O estranho se virou e, pela primeira vez em anos, o mundo ao meu redor começou a encher de cores de novo.

— Yamaguchi?

— Tsukishima...

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