Aurora, Tsipekua e Atlacoya, que assumira o avatar de uma médica de cerca de 25 anos, pegaram um dirigível pequeno em Copacabana, capital do Estado Aymará, e se dirigiram para Cusco, uma das capitais do Império Inca, das quais é uma das maiores cidades, desde os tempos do primeiro império. Tem cerca de 2 milhões de habitantes, divididos entre 5 zonas, sem contar os vilarejos que bordeiam seus arredores. Como a cidade está próxima dos 3 mil metros acima do mar, a temperatura costuma ser amena, mas nesse dia em particular, Cusco sofria com um sol impiedoso, úmido e sufocante.
— Eu estou morrendo de calor — disse Aurora, esbaforida.
— Calor? Está a temperatura perfeita — respondeu Atlacoya, com um sorriso sarcástico que fez abrir feridas em seus lábios ressequidos.
— Cusco é bem maior que as cidades dos Aymará, não é? Ao menos essa é a impressão que eu tenho — disse Tsipekua.
— Sim, é. Desde o tempo do primeiro Império Inca, ela de fato é uma grande cidade. Não que os Aymará não tenham cidades, mas eles, em geral, são uma sociedade mais rural que a quéchua — respondeu Aurora.
— Isso quer dizer que tiveram tempo para alargar essas ruas. Não dá nem para saber se a gente está indo ou voltando, no meio de tanta curva...
— Não seja tão rabugenta, Atlacoya — disse Tsipekua, acostumada com as cidades montanhosas dos Peréchua.
— Não estou sendo. Onde está o maldito porto aéreo para a gente pegar logo nosso dirigível e chegar ao Mēhxico?
Felizmente, não foi difícil conseguir embarcar e, apesar de demorado, o voo para Teotihuacan foi agradável. Lá chegando, em uma cerimônia privada, depositaram o corpo da irmã de Tsipekua em uma tumba sob a grande pirâmide, como os sacerdotes Peréchua haviam recomendado, com as duas joias no lugar do coração.
Atlacoya, por mais que estivesse sedenta de vingança, sabia que Tenochtitlán era um lugar perigoso para ela, pois era uma deusa proscrita em uma cidade repleta de sacerdotes. Mas, inclusive contra a própria natureza, tratava de se manter discreta e de não ser vista. Por um tempo, isso acabou não sendo complicado, na medida em que esta era uma das maiores cidades do mundo, mas mantinha, em muitos locais, ares antigos, bosques sagrados e mesmo regiões cultivadas, com milpas e jardins, além de muitos edifícios públicos e lugares pouco visitados. Algumas semanas depois da chegada, Atlacoya e Tsipekua foram à vizinha cidade de Tlaxcala comprar umas ervas para o boticário de Aurora.
— Atlacoya, muito gentilmente, sugiro que você se apresse, porque senão não conseguiremos chegar à estalagem antes das luzes serem apagadas. Daqui a pouco começa a última hora, e aí teremos apenas minutos para chegar à estalagem.
— Não me apresse, você não tem muita decência. Aliás, nem compreendo como você ainda teima em considerar o tempo como uma entidade moribunda. Eu sou uma Deusa: o tempo não significa nada para mim. Eu posso ficar parada assistindo você arrastar sua carcaça por esse mundo horroroso por mais 4 mil anos, sem sequer me cansar, embora eu certamente vá ficar muito entediada.
— Não é isso, é que a fama desses bosques não é boa, e ainda temos que caminhar uns 600 metros até chegar à cidade.
— Você trouxe o farol portátil, não trouxe? Não entendo porque o medo.
— Já expliquei: a fama desses bosques não é boa. Coisas estranhas acontecem aqui, desde o tempo dos primeiros astecas. Na verdade, eu sei que é ato sagrado apagar as luzes entre a última e a primeira hora, mas existem vantagens nas cidades dos Estados Unidos ou das regiões do mundo onde as noites são iluminadas.
— Não existe vantagem alguma. Isso apaga a luz das estrelas e, portanto, o poder delas, o que certamente cria pessoas transtornadas, pois não há como ser saudável se as estrelas não podem banhar com luz pelo menos o lugar onde você mora.
Como era de se prever, as luzes foram apagadas, e em pouco tempo elas começaram a ouvir um barulho que se assemelhava a alguém cortando uma árvore. Tsipekua achou estranho, mas Atlacoya ordenou que ela não olhasse para trás e simplesmente caminhasse. No entanto, a curiosidade da feiticeira Purépecha falou mais alto, e quando ela deu por si, se viu encarando um homem decepado, trazendo em uma mão a própria cabeça e, na outra, um machado. Um barulho rítmico fez descer seu olhar ao peito do homem, para descobri-lo aberto, com o coração à mostra, se contraindo e batendo em contorções doentias. A memória de histórias contadas há muito tempo atrás fez com que ela não tivesse dúvida: era Yohualtepuztli, o Machado Noturno.
— Pelos deuses, o que é isso?!?
— Chama-se Yohualtepuztli. Não corra, porque se você o fizer, ele vai atrás de você até roubar a sua vida. Enfrente-o e pegue o coração dele.
— Cuerauáperi, deusa da criação, me ajude! — Disse isso e enfiou a mão dentro do tórax do monstro, roubando-lhe o coração. Mesmo com medo, seguiu as orientações de Atlacoya e não o devolveu até que ganhasse quatro espinhos de maguey, pelo que ela ganhou direito a um pedido.
— Agora é o momento mais perigoso, mortal, porque seu pedido só será atendido se você merecê-lo. Caso não, ganhará exatamente o contrário — disse Atlacoya. Tsipekua então pensa e diz:
— Monstro, eis então o que eu desejo e quero que você satisfaça para que eu te devolva seu coração imundo: que na hora mais difícil eu possa chamá-lo, para que você proteja tudo o que estiver ao meu lado. Yohualtepuztli meneia a cabeça, e Tsipekua lhe devolve o coração. Com a cabeça na mão esquerda, o que significava que o pedido seria atendido, o monstro disse, antes de voltar para a floresta:
— Seja feita a sua vontade.
Assim, apesar das duas terem conseguido chegar sãs e salvas à estalagem em que estavam hospedadas, em breve saberiam que Atlacoya estava de volta a Tenochtitlán. Então, assim que chegaram, acordaram Aurora e, mesmo na escuridão, trataram de fugir de Tenochtitlán antes que o sol amanhecesse e os sacerdotes do Imperador viessem atrás de Atlacoya. As três conseguiram fugir para Teotihuacan e, de lá, decidiram ir para a região mais distante do Mēhxico, o norte da Califórnia, na fronteira com o sul do Oregon.
Estar novamente distante de Tenochtitlán e dos sacrifícios que Atlacoya julgava ser merecedora a deixou mais irritadiça que o normal. Depois de algumas semanas, resolveram ir para Sacramento, em busca de suplementos. Ao chegarem a um mercado, Atlacoya se espanta:
— Que lugar esquisito é esse? Não tem ninguém para buscar o que a gente deseja?
— Creio que a dama é nova no lugar e certamente não é uma camponesa muito inteligente — disse rindo um estancieiro local.
— Você se dirigiu a mim?
— Sim, camponesa, qual o problema?
— Eu vou te mostrar qual o problema!
Ao dizer isso, ela abriu mão da magia que estava usando para se camuflar e amaldiçoou não apenas o estancieiro, como a Califórnia inteira, de modo que não choveu durante a primavera, e assim que chegou o verão, uma onda de incêndios se abateu sobre o estado.
No entanto, por ter usado seus poderes, a aparência seca e esquelética, os cabelos de palha e os olhos fundos e negros dela se tornaram visíveis para todas as pessoas, que mais tarde não tardaram a associá-la aos infortúnios que começaram a acontecer no estado. Assim, os sacerdotes locais acabaram sabendo da presença delas e comunicando o fato, por telegrama, com o Templo Maior em Tenochtitlán.
Homens de todo o Mēhxico partiram atrás delas, sob risco de morte. Não aquelas criaturas psicológicas e emasculadas dos livros de Thomas Mann e Dostoiévski, mas homens de verdade, brutos, que apenas estavam sendo estúpidos ao arriscar suas vidas mais para impressionar mulheres que pretendiam levar para a cama do que por vontade genuína de agradar o imperador ou desejo de chuva para camponeses dos quais nem gostavam. E é evidente que todos falharam miseravelmente.
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Aztlán: como tudo recomeçou!
Historical FictionUma série de eventos permite que uma engenheira volte ao começo do século XIX, ensine e aplique tecnologia de alto nível e ajude vários povos a reescrever a História. O México se torna uma das potências mundiais, mas as antigas religiões do continen...