Conto II: O Trem

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Tinha acabado de entrar no trem. Quando a porta se fechou tudo ficou escuro, não conseguia ver por onde andava então ficou parado. Pensou que logo seus olhos se acostumassem com a escuridão e assim veria algo, mas o tempo passou e nada. A escuridão era demais para seus olhos. Começou a ficar nervoso, “vou ficar aqui para sempre? Na escuridão?” pensou. Estava apavorado agora, mas notou algo estranho... Nesses momentos o coração ficava acelerado - disparado como muitos dizem -, mas não o dele, ele não o sentia... Talvez... De repente sentiu um tremor e quase caiu, o trem começara a andar, tinha se esquecido de onde estava.

As luzes se ascenderam, luzes alaranjadas no teto do trem e viu que o mesmo não era luxuoso, as paredes de metal escuro, bancos também de metal, mas acolchoados de veludos e tudo extremamente limpo. Podia se ver nas paredes, no chão e nas janelas... As janelas eram assustadoras para ele, pois o que tinha através delas era escuridão total. Talvez estivesse em um túnel... Não, é escuro demais para um simples túnel, era escuro demais para qualquer coisa. Provavelmente o que tinha além das janelas era o nada.

Sentou-se em um dos bancos para tentar achar algo em sua mente que o explicasse tal situação. Se curvou e ficou olhando para o chão vendo a si mesmo, um homem branco, de roupas sociais, barba feita, um rosto no auge de seus quarenta anos, com olhos verdes e um pequeno inicio de calvície que sempre temia a chegada.

Lembrou-se de ter entrado no trem, mas nada antes disso... Tinha um homem... Uma coisa talvez? Um emprego, amigos, família? Não tinha tempo para isso, talvez... Passos atrapalharam seus pensamentos. Não queria olhar para trás, estava com medo do que poderia ver. O som foi ficando mais alto, e mais alto e quando chegou ao seu lado parou. Tentado pela curiosidade olhou para o lado, levou um leve susto ao ver um homem de bigode parado olhando para ele:

- Passagem. – Disse o homem que usava um uniforme azul junto de um pequeno chapéu da mesma cor.

- Desculpe, mas não tenho uma... – Disse assustado olhando para o homem de bigode.

- Olhe seus bolsos senhor.

Sabendo que não teria passagem alguma nos bolsos ele o faz apenas para provar que não... Na verdade tinha, no primeiro bolso da calça que colocou a mão já encontrou a passagem. Ficou surpreso quando a sentiu em seu bolso, a tirou de vagar e lá estava em sua mão:

“Trem das 22h. Ida”.

Uma passagem com instruções bem simples e pouco informativa, confuso entregou para o “funcionário”.

- Obrigado! – Disse enquanto rasgava um pedaço do papel. – Faça uma boa viagem! – Devolveu o outro pedaço e começou a andar novamente.

- Espere! – Disse em voz alta. – Para onde estou indo?

-Isso eu não sei responder senhor, eu não vou poder tirar duvida alguma sua, me desculpe. – Disse enquanto andava e logo passou para o próximo vagão saindo de vista.

Sozinho naquele vagão começou a pensar que talvez pudesse encontrar alguém mais naquele trem, alguém perdido como ele ou que soubesse para onde estava indo. Se levantou e começou a andar. Abriu a porta na esperança de ver alguém no próximo vagão, mas nada, apenas outra área idêntica a qual estava. Foi para o próximo... Nada, o próximo, nada. Não é possível que não tivesse mais ninguém em um trem daquele tamanho? O maquinista! Sim, tem de ter alguém dirigindo o trem.

Novamente começou a andar em busca de alguém, mas agora tinha certeza de que iria encontrar. Começou a passar de vagão em vagão, mas parecia não chegar nunca, parecia ser sem fim. O desespero chegou forte junto do medo de ficar naquele lugar para sempre. Agora começou a correr em linha reta entre os vagões, mas não via ninguém e nunca chegava no fim. Percebeu que não se cansava e era horrível, pois não tinha a necessidade de parar para descansar o que fazia o desespero só aumentar.

Correu e correu muito, mas não iria parar, não até achar o final. Tudo tem um final, isso aqui também tem que ter, não tem? De repente as luzes se apagaram, com o susto do momento ele caiu. O trem continuou a andar. Caído no chão olhoando para o teto sem ver nada, percebeu que tudo era tão silencioso, só se ouvia o barulho dos trilhos, mais nada, era calmo e aterrorizante ao mesmo tempo. Se apoiou em um dos bancos e se levantou, quase caiu de susto novamente ao ver as janelas. Tinha algo lá dessa vez, imagens como uma tela de cinema, mas as imagens não iluminavam dentro do trem, eram pessoas andando nas ruas, estava claro, ensolarado. Uma pessoa em meio à multidão chamou sua atenção, era ele mesmo e usando a mesma roupa que usara agora. Curioso para assistir mais ele se sentou em um dos bancos.

As “imagens” ou o “filme” nas janelas mostravam ele andando nas ruas de uma cidade, talvez morasse lá... Ele estava com pressa, andando agitado e se esquivando das pessoas e pedintes. Parou em frente á um grande prédio com a maioria das paredes de vidro, respirou fundo e entrou junto de algumas outras pessoas. “Talvez fosse meu emprego”, pensou no trem, mas antes que visse o interior do prédio as imagens sumiram e tudo ficou escuro outra vez.

Confuso e ansioso por mais imagens do que podia ser sua vida, se levantou usando as mãos como “olhos” as passando nas paredes e bancos. Tentava achar a porta para o próximo vagão, sempre tinha um próximo vagão, nunca um final. Finalmente a encontrou e a atravessou. Escuro como o anterior. Continuou andando até que as janelas se ascenderam de novo. Novamente ansioso se sentou.

Agora mostrava um parquinho com várias crianças brincando, algumas fazendo castelos de areia, outras nos balanços e escorregadores, e algumas apenas correndo. Uma das crianças chamou sua atenção, ela estava em um balanço, mas diferente das outras estava sozinho, mas não parecia triste. Era um garoto loiro de olhos verdes, vestia uma camisa verde e uma bermuda azul, devia ter no máximo dez anos. Ele não se lembrava, mas sentia que aquele garoto era ele mesmo. Uma garotinha negra se aproximou timidamente e falou com ele:

- Olá. – Disse ela. – Você está brincando sozinho? Podemos brincar juntos! – Disse com um leve sorriso.

Ele olhou para ela com um olhar enojado, suas roupas eram velhas e tinham alguns furos, definitivamente não podia brincar com alguém assim. Seus pais já o tinham avisado para ter cuidado com pessoas de cor.

- Brincar com você? – Disse franzindo a testa. – Prefiro a minha sombra, ela é mais escura e menos perigosa! – Ao terminar de dizer pulou do balanço deixando a menina sozinha.

O garoto da imagem não viu, mas o homem do trem sim, uma lagrima escorreu do olho da garota, mas ela rapidamente a limpou, engoliu o choro e virou as costas para aquele menino cruel. As janelas novamente se apagaram. Não se lembrava do que tinha visto, não era possível que ele tenha feito algo do tipo, mas... Espere, ele não se lembra de nada, nem como chegou ali, de quem ele era. Ali naquele trem ele sabe muito bem o que é certo e o que é errado, mas não sabe se tinha esse mesmo pensamento antes de ir parar ali.

Ao abrir a porta do outro vagão percebeu que as janelas já estavam passando as imagens, mas não se sentou dessa vez, pois estava com medo do que iria ver. Agora cada quadrado das janelas mostrava uma imagem diferente. Em um o viu como adolescente roubando dinheiro da bolsa de alguém, tinha certeza de que era a bolsa de sua mãe, apesar de não se lembrar, apenas sentia. Em outra o viu caçoar de um rapaz negro que era garçom no restaurante onde estava com uns amigos. Na outra o viu como adulto, essa o deixou perplexo, ele estava tentando ter relações sexuais com uma mulher sem ela querer, mas isso não parecia ser um problema para ele. Sem querer continuar a ver aquilo correu para o próximo vagão, mas a situação não melhorou. Em uma das janelas o viu em uma festa – ele estava bem de vida-, provavelmente estava bêbado. Um rapaz na festa se aproximou dele – era um rapaz bonito – e perguntou se ele tinha interesse em homens, irritado acertou um soco no rosto do garoto, enquanto o chamava de “bixa” o mandava ir embora de sua festa. Em outra janela o viu novamente bêbado, estava em uma casa e viu o mesmo rapaz da festa também bêbado deitado em uma cama, mal conseguindo falar, o viu se aproximar do garoto e sem que o mesmo quisesse o abusou enquanto estava sem forças para se defender, não foi nada agradável de assistir tal coisa.

“Isso não pode ser verdade”, pensou, mas sabia que era, sentia que era. Não queria mais ver imagens nenhuma, estaria ele no inferno? Começou a correr novamente e quando abriu a porta do vagão se assustou ao ver o funcionário do trem novamente, mas ele estava diferente agora, o uniforme estava branco e o bigode menor.

- Senhor! – Disse o funcionário. – Não é seguro correr com trem em movimento, sente-se, por favor.

As imagens ainda estavam passando nas janelas, mas aquele homem parecia não se importar, nem as olhava.

- Eu não posso ficar aqui! – Gritou. – Essas imagens... Eu não quero mais vê-las, preciso sair!

- Sinto muito, mas é o seu trem. Agora sente-se!

Se virou para se sentar, mas antes de fazer parou, não podia sentar ali e ficar vendo e ouvindo aquelas imagens, era horrível. Quando se virou novamente para falar com o homem acabou se sentando devido ao susto. Sua roupa branca estava com manchas vermelhas, um dos olhos estava caindo da orbita e o bigode tinha sumido.
- Meu Deus! – Disse assustado. – Você está bem? O que aconteceu?

- Estou ótimo. – Disse com uma voz estranha, ela oscilava entre o agradável e o estranhamente indescritível.

Assustado tentou se levantar, mas foi empurrado novamente pelo “funcionário”. Ao olhar para ele mais uma vez viu que ele já tinha mudado. Estava sem roupas, havia furos como de balas de armas espalhados por todo o seu corpo, o olho esquerdo tinha caído e o buraco vazio estava maior que uma bola de beisebol, sangue escorria por ele e formava uma poça no chão.

- Tenho que sair daqui! – Gritou ao se levantar e empurrar a criatura.

As imagens e as vozes da janela deixavam a situação pior, era um caos que parecia apenas piorar. Começou a correr entre os vagões, ao olhar para trás viu que a criatura estava correndo também deixando um rastro de sangue pelo caminho. Agora corria mais rápido, mas quanto mais vagões, mais forte e alta ficavam as imagens ao ponto de ficar ensurdecedor. Ouvia as coisas horríveis que uma vez dissera, via as atrocidades que uma vez fizera e tudo parecia não ter fim... O trem parou, as janelas se apagaram, o som silenciou, as luzes ascenderam e a criatura sumiu. Espere... O trem parou? Ele também parou de correr, ficou parado no meio do vagão ainda ouvia suas vozes dizendo coisas horríveis, mesmo que já não tivesse som algum.

Antes que pudesse pensar em qualquer coisa a porta do vagão da frente se abriu, por um momento pensou que fosse a criatura novamente e se fosse não iria lutar e nem fugir. Era o maquinista, um senhor de cabelos grisalhos, tinha um semblante cansado, mas ainda assim passava confiança.

- Chegamos. – Disse ele. – O senhor desce aqui.

Uma porta na lateral se abriu, não sabia se tinha visto essa porta antes, mas não quis mais questionar. A escuridão agora estava do outro lado daquela porta, às luzes do trem não iluminavam nenhum centímetro sequer do lado de fora. Sem nem pensar ou falar, ele saiu. Ao olhar para trás viu o maquinista com um sorriso sendo iluminado pelas luzes alaranjadas do trem, ele estava dando “tchau” com uma das mãos e logo seguiu para o outro vagão o deixando. A luz do trem se apagou, a porta fechou e o trem partiu e ali ele ficou... Esperando.





A Estação/O TremOnde histórias criam vida. Descubra agora