QUATRO

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Por causa do ferimento em minha perna, é quase um mártir acompanhar Farley, que caminha despreocupadamente sem se importar se vou conseguir alcançá-la ou não — apesar de sermos quase da mesma altura. Evitei pedir ajuda a Kilorn. Ele já fez muito por mim desde a hora que acordei. Não quero submetê-lo a mais olhares tortos só por estar me ajudando. Mare ficou no posto médico junto de Shade até ele dormir... dormir de verdade dessa vez. Não nos seguiu depois disso, e entendo muito bem o porquê. Pelo menos um de nós deve estar com energia de sobra para aguentar as coisas por aqui.

Piada idiota, eu sei.

Caminhamos rumo ao desconhecido, recebendo cumprimentos mais adequados dos outros rebeldes, como acenos de cabeça, toques no peito ou na testa. Quero acreditar que eles estão fazendo isso em respeito a Farley, que ostenta as cicatrizes em sua figura determinada e imponente. Ela não se importa com isso. Muito menos com o sangue manchando seu jaleco que um dia foi todo branco e limpo. De acordo com as informações de Mare, parte do sangue é de Shade; Farley arrancou a bala de seu ombro com as próprias mãos em menos de um segundo. Não tive outra reação além de soltar um "puta que pariu!" bem alto e em bom som.

— Ele não está trancafiado, se é isso que pensa — ela zomba, como se estivesse comentando sobre o tempo e não a presença de um príncipe ardente em seu barco subaquático.

— Não me importo — respondo, simplista. — Só quero conversar com ele... de traído para traído.

Farley me observa. Me avalia. Quer me testar, ver até aonde minha fidelidade vai. Evito revirar os olhos, me irritar com isso. Quantas vezes vou ter que dizer que tudo não passou de carência?

O lugar onde Cal fica é deprimente: um reles alojamento escondido nos confins mais obscuros do mersivo, oculto por canos entremeados e dezenas de caixas vazias. Caixas essas que possuem rótulos como "Archeon", "Haven", "Corvium", "Delphie" e até "Belleum", uma cidade prateada que fica em Piedmont. Todas são cidades prateadas. E estas caixas não estão aqui à toa — foram roubadas. Não me dou o trabalho de perguntar, mesmo observando-as com muita atenção. Farley também não se importa de não explicar. Ou não quer fazer isso. Não sou Mare, nem Shade, nem Kilorn para a capitã querer abrir a boca tão cedo.

Sinto meus pés vibrarem com o poderoso motor sob nós, e solto um grunhido de desgosto. Apesar de Cal e eu não termos a mesma relação que antes, não deixo de me preocupar com ele. Se eu, que dormi por tempo demais, ainda me sinto acabada, imagino como Cal se sente neste lugar tão pequeno. Duvido que o príncipe tenha conseguido descansar por pelo menos por algumas horas.

— Tem certeza de que não tinha outro lugar melhor para enfiá-lo? — Pergunto depois de pararmos diante da porta.

Farley dá de ombros, esmurrando a superfície metálica.

— O príncipe não reclamou.

Cruzo os braços. É claro que não...

Mal se passaram segundos quando as dobradiças começam a ranger e gritar e girar. Troco o peso dos pés quando o metal fosco logo é substituído pela cara pálida de Cal. Contenho um gemido de dor.

Não é de se surpreender que ele esteja ereto como uma vareta. Foi criado para agir feito um general frio mediante à essas situações lamentáveis. Está tão machucado quanto eu, mas esconde isso numa expressão séria e enigmática. Mas nada disso se compara às feridas interiores. Só eu sei o que está se passando dentro de seu coração partido e só eu noto o brilho apagado em seus olhos cor de bronze. Cal evita me encarar, mas eu percebo mesmo assim.

— Capitã Farley — ele diz, como se tivesse sido interrompido enquanto fazia algo mais importante.

A líder resmunga, jogando a curta franja loira para o lado.

A Chama da Rebelião (What If...?) A Mais Forte vol. 2Onde histórias criam vida. Descubra agora