DOIS

84 5 0
                                    

Fica mais difícil de respirar conforme os soldados descem a rua, e posso pressentir daqui o perigo mortal que emanam. Não espero que usem armas para nos matar. O poder que corre em suas veias supera qualquer bala ou míssil. Eles só estavam nos encurralando como os ratos previsíveis que somos. Os prateados podem terminar o serviço com as próprias mãos sem nem piscar.

Os rebeldes continuam fugindo mais à frente, o desespero visível em seus ombros tensos e passos vacilantes. Mas para onde vão? A água é a única saída agora. A única solução. E creio que morrer afogado é tão ruim quanto morrer nas mãos dos soldados de Maven. O exército se aproxima, mas dessincronizados, fora de qualquer padrão existente. Ao forçar a vista para enxergá-los melhor através a fumaça infinita, entendo o porquê. E isso faz meu corpo esquentar de tal maneira que sinto as chamas quase emergirem na superfície da minha pele. Shade, Kilorn e Mare se afastam, se protegendo do calor insuportável que se liberta de mim como uma febre doentia.

— Ravenna! — Shade grita, ora de surpresa ora de raiva.

Kilorn não fala nada, apenas me observa quase — literalmente — explodir de ódio. Mare parece tão indignada quanto eu, mas não reage nem abre a boca para protestar.

— Olhem! — Grito, agarrando o braço de Kilorn e apontando para o norte. Ele não se afasta, pois sente novamente o frio perpetuar pelo meu corpo. Sabe que eu jamais o machucaria.

Nem Cal, o soldado, o general, previra isso. Nem eu, nem ninguém. Mas eu sabia que Maven faria alguma coisa para me atingir e atingir o irmão. E conseguiu. Quem está na linha de frente do exército não são os soldados, muito menos são prateados. Uma corrente carmesim se destaca no meu campo de visão, me cegando como a ira. As vestes dos criados reféns são totalmente vermelhas. Dos pés às cabeças, são como um muro rubro e escarlate que nos separa da morte iminente. Um escudo feito de carne e osso. E nos seus pés, grilhões tinem secamente contra o chão poeirento e pedregoso. Uma visão do inferno.

Ao meu lado, Kilorn rosna e aponta o rifle na direção do exército. Mas as mãos tremem, ameaçam vacilar. E, mesmo sem o escudo humano, seria impossível acertá-los com balas. Seria um ato em vão. Uma tentativa falha que resultaria na morte de centenas de inocentes.

— Temos que continuar em frente — Shade diz. Ele está tão irado quanto eu, mas sabe o que deve ignorar para continuar vivendo. Isso o mata por dentro, mas não hesita. — Kilorn, venha com a gente agora ou vamos deixar você aí.

Porém Kilorn não se move. Ainda aponta arma para o exército, ainda quer lutar contra eles. Mas isso é impossível agora. Eles são muitos e nós, quase nada. Esse idiota tem que aceitar isso, senão vamos todos morrer. Vou até Kilorn e agarro seu braço. Sussurro em seu ouvido, fazendo-o prestar atenção na minha voz, e somente nela:

— Kilorn, por favor, me ouça — disparo. Preciso ficar na ponta dos pés para alcançar seu rosto. — Kilorn... não podemos lutar agora. Precisamos correr — encaro rapidamente os pobres criados. A imagem dói tanto que não consigo manter meu olhar por muito tempo. — Não podemos salvá-los, Kilorn.

— Não é verdade — ele murmura, virando-se para mim. Vejo o desespero em seus olhos, e isso me destrói. — Você tem que fazer alguma coisa. Você pode salvar essas pessoas...

Respiro fundo para minha voz não sair trêmula.

— Não, Kilorn... eu não posso.

Ele cede depois de uns segundos, sendo guiado por mim durante alguns metros até voltar a correr sozinho ao meu lado. Os mísseis cantam pelos ares, explodindo próximos demais. Não deixo de sentir pânico. Uma névoa de estilhaços nos envolve, machucando meus braços expostos quando cubro meu rosto para proteger meus olhos. As estruturas atingidas se inclinam, ameaçam cair, e sei que atravessar esse labirinto centenário à pé é mais um risco que estamos correndo. Shade provavelmente também sabe. Ele some com Mare só para aparecer novamente atrás de nós com ela grudada em seu corpo. Shade, então, segura em mim e em Kilorn e nos leva junto. Sinto o mundo girar e escurecer. Sinto meu estômago embrulhar, a mesma sensação de quando fui tirada do Ossário, daquele círculo de morte. Continuamos assim, saltando e saltando conforme o cenário, o mundo desaba sobre nossas cabeças. Vidro, cinzas, pó, os saltos... tudo isso se mistura numa tempestade arrasadora, me impedindo de respirar normalmente. Mais estilhaços nos envolvem, piorando mais ainda a situação do meu traje. Kilorn parece tão pior quanto eu, mais feridas se formando por causa do vidro e do metal. Suas bandagens velhas pingam sangue, e sei que ele contém gritos de dor. Não sei como Mare está, muito menos Shade. Mas noto que ele começa a se cansar a cada salto, ficando mais pálido e trêmulo — principalmente por estar carregando três pessoas consigo ao mesmo tempo. Mare, com a ajuda das suas faíscas arroxeadas, lança fora e explode cacos de vidro e metal que nem o poder do irmão é capaz de impedir de nos atingir. Não uso minhas chamas. Não quero correr o risco de machucá-los por causa da adrenalina que essa guerra nos proporciona. Não mais.

A Chama da Rebelião (What If...?) A Mais Forte vol. 2Onde histórias criam vida. Descubra agora