Mãos amigas

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    Tive uma percepção incrível hoje durante o trabalho

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    Tive uma percepção incrível hoje durante o trabalho. Perto do horário de fechar recebi uma reclamação sobre o sabor do frango. O cliente alegou que estava doce e levei o prato até a cozinha. Trouxe a informação ao cozinheiro que intercalou o olhar entre o frango e a mim, iniciando a formar símbolos estranhos com as mãos que entendi, mas mais por conta de sua feição que, indubitavelmente, mostrava que eu o havia emputecido ao acatar uma reclamação justificável. Quis argumentar que ele era mudo e não cego, então como confundiria o pote escrito "SAL" com o escrito "AÇÚCAR"? Só que desisti, porque eu sou um cara bacana, não babaca.
    Mas quanto a percepção: obtive hoje, por incrível que pareça, um lucro maior do que tive em uma semana e me senti que nem um pinto no lixo. Limpei as mesas com uma cantoria desafinada, espirrando o álcool como se fosse pózinho mágico. Se fossem-me dadas as asas, encarnaria sem titubear o papel de fada sininho, voando por aí, colocando as cadeiras de cabeça para baixo em cima das mesas, despedindo do cozinheiro e dando uma última ronda antes de trancar o estabelecimento e ir assobiando para meu apartamento pequenininho.
    O lugar era mesmo simples. Um quarto, um banheiro e uma cozinha americana. A sala eu chamava de varanda, pois uma era embutida na outra. No anúncio estava escrito "vista para o mar". Levando em consideração que morava na lateral e tinha de me inclinar no batente enferrujado e virar a cabeça para a direita e somente correndo risco de despencar um andar teria a bela vista, então sim, eles não estavam mentindo. Ao menos eu gostava da pintura. O amarelinho nas paredes me alegrava. Os móveis faziam parte do contrato de aluguel. Descreveria eles como rústicos, um baita eufemismo.
    Quando cheguei, coloquei a chave no molho que tinha acumulado num potinho raso, tirei o uniforme e coloquei na roupa suja, descalcei os sapatos deixando-os na porta do banheiro e fui tomar um banho.
    É incrível como quando se esfria a cabeça ela funciona melhor. Calculei como o próprio Einstein que, se juntasse essa mesma quantia amanhã, poderia ir na boate. Sabão deve ter coberto meus pensamentos e lavado todo o planejamento de economizar para comprar os benditos lápis extra finos e as réguas retráteis de que preciso. A conta devia ser voltada para isto, então por que, meu Jesus Cristinho, o senhor nubla-me com imagens pecaminosas de diversão entre jovens? A verdade é que não ligava para esses compromissos antes, mas agora que Taehyung repetiu e repetiu sobre o assunto, o que mais quero é um amor e uma noite inesquecível com música alta. Esse sonho exclui minha realidade miserável, ignorando minhas prioridades.
    Seco os cabelos e me olho no espelho conferindo se não me esqueci de enxaguar as costas. Assisto algumas gotas deslizarem no meu corpo ficando aflito com o quão magro e pálido a figura que me encara de volta é. Falta pouco para me transformar num Wendigo. É, tenho de admitir, preciso me cuidar mais e isso inclui tomar Sol.
    Pronto para dormir vestindo minha cuequinha azul bebê que um dia foi branca, deito e me cubro, esticando o braço apenas para apagar o abajur. O que eu devo fazer com esse bônus de hoje? A resposta é tão simples, então por que estou com dúvidas? Qual o meu problema? Credo! Espero que amanhã eu tenha fixado uma resposta.

[...]

    Puta que me pariu! Já não bastasse estar balançado com o anúncio alucinante que todos já viram e repetiram mil vezes — muito diferente daqueles do YouTube que a cada um dos 5 segundos de espera para poder pular, um neurônio nosso morre e renasce —, a banda dos meus amigos tinha que me visitar no trabalho com seus namoros que arrumaram ontem, justamente na balada.
    — Namorados? — com um ar incrédulo intercalo meu levantar de sobrancelhas, primeiro para Taehyung e depois para Jungkook.
    — Ih... Tem regra agora para a quantidade de dias de ficante antes de pedir em namoro, é? Dessa eu não sabia.
    Jungkook, o mais novo de nós, sempre foi atrevido e juro que usaria aquela cara de falso santo para esfregar o balcão. Faria exatamente isso sem remorso, porém — contudo, entretanto, todavia — o pirralho tinha sentado em seu colo uma versão menos bochechuda da Selena Gomez. Como raios o lazarento arrumou aquela modelo? Jungkook é o cara mais infantil e fedido que eu já conheci, fora suas implicâncias constantes. Te juro que um dia o pedi para abrir um saco de salgadinho pra mim e até hoje ele diz pra todo mundo que eu sou tão fraquinho que até uma batata chips me trituraria, não o contrário. Sinceramente eu não entendo como uma mulher se submeteria a esse projeto de imbecil.
    — Jimin, eu não conseguiria te explicar como foi a experiência de ontem. Trouxe essa belezinha pra ver se você entende e se te convenço a ir na próxima.
    Taehyung se debruça numa garota loira que trouxe consigo. Foi um desafio olhar para o rosto dela. O top que usava malmente cobria os seios e que Santa Maria me perdoe por saber a cor da auréola dos peitos da namorada do meu amigo. Observo o jeito apaixonado que ela olha para ele e realmente acharia que seria mais uma falácia se ele apenas me contasse e não trouxesse a prova viva.
    — E aí, galera? Tudo em cima?
    Não era necessário levantar o olhar para saber que o recém chegado era J-Hope. O agudo de sua voz me dava nos nervos e, mesmo ele sendo educado, conseguia ser mais irritante que Taehyung e Jungkook juntos. Está decidido. Vou mudar de bonde que o meu não me serve mais.
    — Fala, JJ! Beleza, cara? — cumprimenta Jungkook achando que ninguém via onde aquele desinibido colocava as mãos.
    — Está atrasado — resmunga Taehyung.
    — Me erra, Taehyung! O Yoongi se atrasou porque não achava a jaqueta.
    — Quem é Yoongi?
    — Meu namorado.
    Acho que nunca vi uma propagação tão rápida de tosse. Era uma novidade para nós três e, por sorte, o tal Yoongi chegou um pouco depois e não o assustamos. Ele era baixinho, mas a cara de marrento cumpria facilmente com o papel de "não me perturbe ou farei com que engula seus próprios dentes". E isso por si só nos calou quanto às brincadeiras que tínhamos pensado em fazer com o ruivo e seu homem.
    — O que vocês estavam fofocando? — J-Hope senta na bancada e Yoongi busca uma banqueta para sentar ao seu lado. É normal sentir inveja de casais homo? Minha carência está tanta que acho que se um milionário me quisesse, perguntaria que roupa ele gostaria que vestisse! Carência de dinheiro, hein! Não venha se confundir comigo não! Aqui é 99% hétero, perfeito, mas aquele 1% é quebrado.
    — Sobre o Ibiza Night Club. Do que mais estaríamos falando?
    — Pra quê esse coice, Jungkook? — Taehyung repreende o mais novo. Se bem o conheço, fez isso por medo do que o novo namorado dark das trevas do Hope faria com seu único e precioso baixista.
    Peço perdão à comunidade gótica e por estigmatizar vocês. É só que uma vez eu sonhei que um cara todo de preto me perseguia querendo apalpar minha bunda e desde então eu tenho pavor de que surja um sujeito de rímel e ele queira me bulinar. Yoongi parecia ter olhos só pro ruivo, um alívio.
    Dona Yule e o cozinheiro estavam dando tudo de si, consequentemente eu não era diferente. Servi algumas mesas e preparei alguns drinks. Depois voltei e me juntei aos meus amigos.
    Finalmente com todos reunidos, servi os drinks e papeamos alegremente. Os três casais estavam em harmonia e logicamente me senti excluído naquele meio. Teve um momento que J-Hope e Yoongi se esqueceram de que estavam em local público e disse a eles que interditaria o banheiro se eles fossem para lá. Pobre dona Yule. Ainda bem que ela não tem nem metade da noção do que é que está limpando. Veja como ser barman é melhor que ser faxineiro. No meu caso pode adicionar no currículo "guarda-fodas".
    — Diga aos telespectadores como é ter o cargo de solteirão do grupo. — Jungkook finge segurar um microfone e me direciona seu punho. Se eu fosse o Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street, morderia suas juntas e quero ver se ele entenderia a referência.
    — Em primeiro lugar eu sou o que tem menos chances de adquirir DST. — Os dois casais restantes vaiaram e os outros clientes nos lançaram olhares nada agradáveis. — E em segundo eu estou mais perto de atingir meu objetivo por ter economizado esse rolê.
    — E o que adianta economizar a vida toda e não curtir? — Por Jungkook ser dentuço, para mim tudo o que dizia era piada. Hoje, ali e agora, ele parecia ser o dono da razão.
    — Foi o que eu disse a ele! — Taehyung dá corda e até as garotas concordam.
    — Gente, eu não sei como ser mais claro. Eu não posso ir, tá legal? Estou duro!
    Meus amigos se entreolharam e suas namoradas morderam explicitamente os lábios. Pelo amor de Deus, eles nunca ouviram essa expressão?!
    — Se você parasse de se queixar e mudasse o pensamento, quem sabe não tropeçaria numa carteira perdida na rua?
    — Achado não é roubado! — Taehyung sem dar pilha às más influências não é Taehyung.
    Estou perdendo a paciência. Fecho os olhos com força e respiro para me acalmar.
    — Jungkook, qual a probabilidade disso acontecer, hein? Quase nenhuma! E... Gente, só esquece.
    Eu me senti ainda mais inferior graças às carinhas de pena que caíram sobre mim. A loira que não largava do pescoço do guitarrista retirou do bojo umas notas e selecionou uma de 20€ colocando no balcão e o copo em cima. Levantei o olhar constrangido. De repente se ela me visse de gogoboy teria me dado de gorjeta as outras notas. Brincadeiras à parte. Estava agradecido.
    — Aqui. Junta para comprar a entrada — a outra, namorada do baixista, segurava a mesma quantia como se segura um maço de cigarro. Encarei as unhas pintadas de preto dela, Jungkook e o tantinho de rímel borrado no canto daqueles olhos de cigana.
    — Tenho um pouco também, mas não é muito — sussurra Jungkook, contribuindo com mais 15€.
    — Lá vou eu bancar um pobretão — brinca Taehyung, mostrando que na carteira tinha 35€.
    Quase chorei de emoção com a caridade de todos.
    — Eita! Essa grana é para alguma aposta? — o ruivinho e seu boy magia voltam como se nunca tivessem saído, as marcas escuras no pescoço do mais alegre contando outra história.
    — É uma doação ao nosso amigo loirinho para ver se ele desencana — Taehyung aperta e me chacoalha pela nuca.
    — Essa é nova! Quero ajudar também! Dez está bom? — E J-Hope põe na mesa com um sorriso branquinho, os seus dentes saudáveis como os de cavalo.
    — Essa é a quantia exata para a entrada — comento baixinho sorrindo afetado. Estava grato por me ajudarem. A questão é que chegar ao ponto de ser ajudado retirou boa parte de minha honra como homem. Não vejo a hora de me formar e atuar na minha área, planejando casarões lindos de capa de revista.
    — Toma — essa voz grossa era quase tão profunda quanto a de Taehyung. Tratava-se de Yoongi que segurava 50€ entre o polegar e o indicador. J-Hope acariciou o ombro do namorado e orgulhosamente anunciou:
    — Ele é o filho do seu chefe, Jimin!
    Peguei receoso de ter sem querer me vendido como sugar baby daquele bad boy de jaqueta de couro e feição ameaçadora. O mesmo sorriu de um jeito que não combinava em nada com ele, um jeito fofo que mostrava as gengivas e disse assim:
    — Quando comprar a bala, fale com o barman de lá e diga que você é amigo do senhor Min. Ele vai te dar bebidas à vontade.
    Não vou mentir que me arrepiei todinho com o vozeirão dele. Gay ou não, sei quando alguém pega um partidão e o J-Hope cumpriu sua missão de vida. Se não quiser reencarnar ele nem precisa.
    Juntei o dinheiro nas mãos e tive que esconder o rosto, pois quis chorar.
    — Um brinde à futura transa do nosso amigo Jimin! — gritou Taehyung e todos brindaram.

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❝𝐍𝐢𝐠𝐡𝐭 𝐂𝐥𝐮𝐛⚥❞Onde histórias criam vida. Descubra agora