Parte 02

14 4 3
                                    

II


Normalmente os passeios da turma eram um churrasco na casa com piscina de alguém, e sempre tinha um bom motivo para não participar das reuniõezinhas deles, como por exemplo não querer ir para a casa de alguém que morava do outro lado da cidade.


Mas dessa vez era para ver um filme em um cinema perto da escola, e a turma estava animada com a ideia. Um ingresso de cinema não era tão caro, era perto da escola, logo depois da aula, e sobravam poucas desculpas para não ir. É claro, sempre sobrava o "ah, vou estar ocupada", mas até o meu grupinho estava animando para ir no filme.


E eu sempre ficava de fora dos rolês, mas dessa vez até os professores sabiam que nós, como turma, iríamos ao cinema, e eu pensei "por que não?", seria como tocar o pé na água da praia para saber se está gelada antes de entrar. Um cinema do lado da escola, eu poderia estar assistindo um filme e por coincidência esbarrar com eles lá.


Então aceitei o convite, e de repente, dos trinta-e-poucos alunos da turma, pelo menos uns vinte resolveram acompanhar. Parecia que ia ser uma grande complicação para comprar os ingressos e deixar tudo pronto para o dia, mas a ideia era ver um filme mal cotado qualquer, no meio da semana, logo depois da aula.


O cinema estava vazio, e a gente podia só chegar, a turma toda de alunos, comprar os ingressos individualmente e assistir o filme. Não seria nem a primeira vez que assistiríamos a um filme como turma, professores já passaram filmes na sala de aula antes daquele passeio. Mas dessa vez a gente pagaria nossos ingressos.


Então chegou o dia e compramos os ingressos, e é claro que haveria algum problema. Bem, as poltronas eram um problema. A questão toda da sala de cinema é que as pessoas sentam em fileiras, uma do lado da outra. Naquela sala em específico, a posição das cadeiras fazia ser bem difícil ver ou falar com quem quer que estivesse sentado na frente ou atrás de você, sobrando apenas as pessoas que sentavam do seu lado.


Mas os grupinhos de amigos eram grandes, e não tinham fileiras o suficiente para todos eles. Acabava que alguns se separavam de seus grupinhos e tinham que sentar em algum lugar aleatório do cinema e é claro que eu fui uma dessas otárias. Eu e Letícia.


É aqui que entraria a frase "por que logo eu? Por que logo com ela?!", mas sinceramente não foi nem isso o que eu pensei. O que eu pensei só foi "ah não, de quem eu vou roubar pipoca agora?". Sério, ela não era tão especial assim para mim, tinha gente muito pior para sentar do meu lado.


Imagina que horror se alguém do grupinho enxerido - o grupinho que convidou a gente, em primeiro lugar - sentasse do meu lado? Pelo menos Lelé era mais quieta e não ia perguntar da minha vida. Especialmente porque ela também não ia com a minha cara.


Então estávamos sentadas ali, no meio do cinema, longe de nossos grupinhos, eu com frio e ela com pipoca. Mas enquanto ela tinha pipoca, eu tinha meu pequeno cobertor de emergência na mochila. É claro que eu ia levá-lo, estava indo para o cinema. Quem não gostou nada disso foi o professor de biologia por eu não estar com o livro da matéria, mas ei, era uma escolha, ou eu levava os livros ou a coberta, e eu escolhi o conforto acima do conhecimento.


E o filme, nem me lembro do nome. Certamente não foi um filme importante, era chato, e eu estava com sono. Estava com tanto sono que não haviam dado nem vinte minutos de filme e eu já estava querendo dormir. Aí Lelé quebrou meu sono pra falar que a atriz atuava mal.


Eu não tinha muito o que fazer além de concordar, mas sentia um certo desconforto por falar com ela, acho que era só estranho trocar palavras fora da sala de aula. Mas sendo sincera, se esbarrasse com ela na rua, provavelmente daria um oi. Ou fingiria não ter visto. Provavelmente a segunda opção.


Ok, primeiro contato realizado, agora eu estava quase envergonhada por estar cambaleando de sono na poltrona sem nenhum amigo por perto. Me sentia aquelas pessoas que iam no cinema só para dormir, elas existem, e provavelmente não têm um quarto quieto e escuro com ar condicionado em casa.


Então eu resolvia dizer algo apenas para não dormir, não queria parecer a maluca que dormia no cinema. Dizia alguma mania que a tal atriz tinha, e falava para Lelé prestar atenção, e ela ria, falando que tinha notado. Eu disse que nossas conversas costumavam ser civilizadas, quem olhasse a gente nem diria que a gente se odiava.


Aí ela se encolhia de frio e perguntava se eu queria pipoca, e nesse momento eu tinha a opção de aceitar por educação ou aceitar porque eu realmente queria roubar a pipoca de alguém. Em troca, eu perguntava se ela queria se cobrir, por educação. E ela aceitava, é claro.


Eu não estava nem um pouco incomodada, era uma cobertinha grande o suficiente, e eu levantei o braço da poltrona que estava entre nós para passar a coberta. Quem olhasse sem saber, diria que éramos amigas.


E como eu disse, não era realmente que eu odiasse ela ou qualquer coisa do tipo, então não estava completamente irritada por ela estar encostada em mim, compartilhando pipoca comigo enquanto a gente trocava uma quase invisível risada por conta da atriz. Não durou nem dez minutos e eu dormi.


Devo ter cochilado por uma meia hora quando abri os olhos no meio do filme e vi que tinha apagado com a cabeça encostada nela. Eu já estava quase aceitando o apelido de "maluca do cinema" quando notei que ela também tinha cochilado, e ela só abria os olhos enquanto eu, envergonhada, não sabia se pedia desculpas ou se morria.


Ela se inclinava pro outro lado, meio assustada, pedindo desculpas, e eu soltei uma outra risada discreta, sabendo que eu pelo menos não ia ser a única maluca, e falava que ela podia continuar deitada. Não estava me incomodando, e era melhor do que encostar em alguma pessoa desconhecida do cinema. E ela me deixou roubar pipoca.


Eu falei naqueles sussurros quietos de cinema que aquele filme era muito bom pra dormir, e ela concordava, inclinando em mim de novo. Eu fui quase pega de surpresa por ela resolver voltar pra posição acidental em que estava, mas estava confortável, e se eu tinha escolhido o conforto sobre o conhecimento, talvez também devesse escolher o conforto acima da inimizade.


Era uma trégua, eu passava o meu braço por cima do ombro dela com a coberta, ela ria e me abraçava de volta, e a gente dormia como uma pedra.


Só quando uma bolinha de papel atingiu minha cabeça, algumas dezenas de minutos depois, que eu percebi que talvez tivesse afetado a minha vida social permanentemente de alguma forma. Eu abri os olhos meio assustada enquanto um dos meus amigos me acordava, os créditos passando na tela da sala ainda escura, e Letícia ainda dormindo abraçada em mim.


Pelo menos eu não seria a única maluca. Ela acordava também assustada, se ajeitando na cadeira, e eu não sabia onde me esconder, nem de quem me esconder. Me esconder dela, dos meus amigos, ou dos amigos dela? Ou de ninguém, já que ninguém comentou nada. Ninguém notou nada, só me acordaram sem a certeza do que eu estava fazendo, era uma sala escura.


Fingi ter calma, fingi não estar envergonhada. Lelé olhava para mim escondendo uma risada e eu tentava compartilhar um olhar de "ninguém fala nada", que ela muito certamente não percebeu. Acho que nem eu percebi o dela, se ela fez algum. Só sei que não falamos mais nada além de um "tchau" enquanto saíamos da sala, voltando cada uma pro seu grupinho.

Maluca e Lelé da CucaOnde histórias criam vida. Descubra agora