Parte 06

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VI


Novamente, no fundo da sala, podia observar tudo, inclusive ela, que rabiscava seus desenhos bonitinhos nos cantos das folhas do caderno. Não sabia o que eram, pareciam mandalas, aquelas coisas que parecem flores mas na verdade também servem como representação artística de alguma coisa matemática. Só sei que isso não queria dizer nada sobre ela, ou ela era uma calculista expressando equações no papel, ou era uma artista que não usava palavras.


De novo as batucadas atrás da orelha, e eu não conseguia não olhar, talvez eu tivesse uma quedinha pelo jeito que ela mexia nas mechas do cabelo, ou o jeito como ela fingia que não me via olhando para ela. E os amigos dela, trocando sussurros na sala, dessa vez não falavam sobre mim. Era a minha chance de pedir uma borracha, mas eu escrevia de caneta, apenas pareceria maluca mais uma vez.


Abria a mochila para olhar as horas, e ela me impedia, falando para mim os números que apareciam na tela do celular dela. Estava logo ali, em cima da mesa, como eu não havia pensado nisso? Eu agradecia, e ela perguntava se não era mais fácil deixar o telefone na mesa ao invés de mexer na mochila de cinco em cinco minutos.


Eu ficava envergonhada, é isso, ela sabia que eu era louca. E eu respondia um "talvez", sem colocar o celular na mesa. Eu não ia mudar meus costumes apenas por parecer maluca. Então resolvi que ela havia aberto uma brecha, falando comigo, e perguntei o que ela estava desenhando.


"Não sei, qualquer coisa", ela dizia e eu percebia que ela certamente não era uma matemática, provavelmente uma artista. "Quero fazer uma tatuagem", ela dizia como se eu tivesse perguntado sobre a vida dela. Uma tatuagem, é claro, agora fazia todo o sentido.


"Não seria melhor desenhar no braço?", eu questionava como se quisesse saber da vida dela, e ela levantava a manga da camisa mostrando uma versão levemente torta de um desenho parecido com o do caderno. "Não consigo desenhar no meu braço", ela ria e escondia a obra de arte de novo.


"Pode desenhar no meu", eu me oferecia como cobaia. Ela me olhava estranho por um ou dois segundos antes de sorrir e começar a desenhar. Eu nunca havia pensado em fazer uma tatuagem, e aquela experiência me convencia de que eu não queria uma de verdade. Já sentia um certo nervoso com a caneta, imagina com uma máquina de tatuar com agulhas e tinta permanente, seria um evento traumático.


Mas o desenho era legal. Ela terminava e perguntava se eu tinha gostado, e eu podia dizer a verdade ou implicar com ela. É claro que eu disse que gostei, e ela perguntava se podia tirar uma foto. Nada mais justo, eu ficava com um desenho dela, e ela com uma foto minha. E depois ela dizia que eu poderia pedir para ela se quisesse mais uma tatuagem daquelas.


Eu não queria, mas queria falar com ela. Então nos dias seguintes, eu sentava perto dela e servia de quadro para ela testar os traços. Não era tão difícil falar com ela, afinal. Quem olhasse de longe, até diria que parecíamos amigas. E quantas vezes precisávamos fazer aquilo para sermos realmente amigas?


Eu me revezava entre sentar com o grupinho legal e sentar com o grupinho da Lelé, que vez ou outra ainda me tratavam como se eu estivesse realmente lá, diferente de mim mesma que fingia não existir para eles. E meus amigos comentavam que eu estava me aproximando deles. Eu estava? Estava apenas frustrada que fazia tudo aquilo e não recebia mais nenhum abraço.


Mas já estava feito, já rolavam os boatos de que eu e Letícia éramos melhores amigas, e a parte mais triste é que não éramos. Eu abraçava o meu cobertor de noite, triste, pensando que poderiam não ser apenas boatos. Mas o que eu poderia fazer? O que faríamos se fôssemos amigas? Ir no cinema e dormir abraçadas vendo um filme chato é que não era.


Então chamei ela para ir no cinema, e ela aceitou. A sessão do filme desconhecido no meio da semana depois da aula, pouca gente na sala, certamente haviam outros alunos lá, mas ninguém da nossa turma. Ninguém que fofocaria sobre nós.


Apenas nós duas, abraçadas sob o cobertor de emergência comendo pipoca enquanto eu me sentia uma pessoa horrível por estar fingindo ser legal com ela esse tempo todo apenas por querer um abraço de novo. Eu não era tão carente assim, era só um abraço, não era para ser especial.


Mas parecia especial quando acabava a sessão e ela me chamava para tomar um sorvete, falando que queria algo doce para "neutralizar o salgado da pipoca". É isso, agora ela era a maluca neutralizadora de sais, e por algum motivo eu me senti quase confortável e contei esse apelido para ela. Ela riu, eu ri, e ela perguntou que tipo de maluca eu era então.


"Maluca mocréia", eu dizia e ela ria sem entender. Nem eu entendia, eu era maluca ou mocréia, mas as duas coisas era exagero. Então ela pegava uma caneta da mochila, puxava minha mão e escrevia "mm", e bastava ver ela batucando novamente a caneta atrás da orelha para eu ter a certeza de que eu talvez não fosse uma maluca mocréia, mas eu certamente estava maluca por ela.


- Lua Calixto
[19/09/21]


Maluca e Lelé da CucaOnde histórias criam vida. Descubra agora