Âncora

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14 de abril de 2054

Southampton, Hampshire / Reino Unido

Jack sempre imaginou a estrutura do tempo na forma de uma esfera armilar; um globo recheado infinitamente de circunferências girando em incontáveis direções, formando caminhos e conexões a perder de vista. Entretanto, a base original de metal ainda era contida por simples parafusos que, caso se perdessem, colocariam abaixo todo o sistema. Naquele momento, correndo na chuva cinzenta com seus pensamentos, ele se imaginava engatilhando a desparafusadeira elétrica do avô.

Assim como seu sentimento sobre Rose e o colar, um táxi virou a esquina atrás dele de supetão. As folhas do Parque Palmerston se agitaram no asfalto encharcado quando o automóvel aplainou por cima delas. A porta traseira se abriu para Jack, que entrou no carro e retirou uma luva, encostando a palma no leitor de digitais nas costas do banco do carona.

- Qual é o seu destino? - interrogou-lhe a voz serena do sistema de comando de voz.

Rose.

- Museu SeaCity. Rápido.

A faxineira quase lhe arremessou a vassoura quando empurrou as portas do salão que antevia o lugar onde mantinham o colar. Sem visitantes, o museu estava prestes a fechar, o silêncio quebrado apenas pelo tilintar das louças sendo lavadas ao longe na cafeteria. Ele não se importou com as câmeras, tampouco se a mulher chamasse alguém; sua mente precisava estar com a energia da joia como nunca precisou de nada antes na vida.

Sem perder muito tempo olhando em volta, o viajante seguiu o caminho do tour que fizera pela manhã, chegando exatamente lá. A safira parecia piscar para ele com seu brilho, ofuscando todas as outras riquezas históricas do ambiente soturno. Se aproximando, tocou na redoma que a protegia, refletindo em como seria apertá-la dentro de sua mão e sentir Rose mais perto do que nunca.

- Por que isso está acontecendo comigo? - questionou Jack em um suspiro para si mesmo, ao que ajoelhava em frente ao objeto. Era loucura. Seu lado sensato da mente estava certo. Seu avô estava certo. Lizzy, caso soubesse de toda situação, diria o mesmo. Viagens no tempo já eram ultrajes suficientes à ordem natural das coisas, como ele podia sequer cogitar a tentativa de quebrar um de seus mandamentos mais estoicos?

O pintor debruçou a testa no vidro que o separava do colar e fechou os olhos com força.

Jack.

Uma voz. Uma voz calma chamava seu nome, baixa como o zumbir de um inseto que atravessa uma orelha. Jack abriu os olhos, o queixo despencando ao entender que o som viera do colar.

Jack...

Rose. Aquela era voz de Rose. Ele abriu um sorriso automático, desacreditando no que acontecia e quase dando um abraço no pedestal sob a redoma. Mas a fala lhe soou triste, incompleta. Ela tentava lhe dizer alguma coisa.

Não cabe a você me salvar, Jack.

Não. Não. O que ela quis dizer? O que isso significaria? Jack temia estar perdendo a sanidade; a raiva lhe subia pela resposta de Rose. Ela não sabia como a história terminava, ele sim. O Titanic chegava a Nova Iorque e ela não estaria lá para desembarcar. Era verdade, não cabia a Jack salvá-la do mundo, dos perigos, tampouco do mar. Ele necessitava salvá-la de si mesma.

Girando o corpo no que soava em sua cabeça em câmera lenta, Jack tencionou as forças no braço direito e desferiu um soco na redoma, partindo sua estrutura. A dor das fagulhas que penetraram em sua pele sumia com o susto que levou ao ouvir uma sirene. O alarme.

Quem sabe Lizzy leria a manchete do jornal local no dia seguinte que seu melhor amigo roubou a joia mais valiosa do museu? Talvez alguém na redação ficasse agradecido por dar-lhes uma notícia grande em uma cidade vagarosa tal qual Southampton. Essa certeza Jack não poderia ter, mas sabia que, sem sombra de dúvidas, não estaria lá para ver.

Segurando o Coração do Oceano com ambas as mãos, o viajante retesou os cotovelos ao corpo, fechou os olhos e anulou mentalmente o grito do alarme. Inspirou, expirou. Aos poucos, Jack sentia o corpo mais leve, porém o ar mais pesado, lento ao seu redor. Era o momento de traçar sua rota.

Quando mentalizou Rose em 1912, não havia rosto, corpo, formas, somente uma voz que balançava em ondas. A falta de referências logo surtia efeito, conforme o pintor voltava a experimentar a gravidade usual. Mais forte, Jack, anda. Ele se incentivava, colocando-se de volta no ponto inicial de viagem. Rose. 1912. Colar. Rose. 1912. Colar.

A repetição só causava uma dor de cabeça maior, intensificada pelo tempo que passava mais devagar à sua volta. Encostou o colar mais ao peito, em dado momento deixando de saber se as batidas de seu coração vinham de lá ou da joia em si. De alguma forma, ela emanava a sensação do desejo que ele viajasse tanto quanto o próprio Jack.

Rose. 1912. Colar. Os batimentos cardíacos aumentavam vigorosamente e ele se questionou, entre uma tentativa e outra, se era assim que uma pessoa enfartando se sentia. Rose. 1912. Colar. Jack percebeu o quanto forçava seu dom quando começou a perder a sensibilidade das mãos, o momento atual se chocando com a data passada. As duas épocas o recusavam, em meio a uma batalha da realidade de seu próprio corpo. Rose. 1912. Colar.

Ele quase abriu os olhos para confirmar se nenhuma multidão cavava suas pernas com garfos ao passo que a dor se tornava insuportavelmente lacerante. Ele não podia movê-las, mas sentia cada parte delas sendo dilacerada. O tempo da esfera armilar engalfinhava duas de suas circunferências que não o queriam sob sua responsabilidade. Uma sensação molhada deslizou de seu nariz e caiu no lábio superior, boca adentro. Sangue.

Rose. 1912. Colar. A dor de cabeça evoluiu para um latejar praticamente contínuo, testando sua concentração e a sensibilidade para não desmaiar. Jack se entendeu prestes a implorar para que aquilo funcionasse ou o matasse de uma vez, o sofrimento convocando lágrimas tímidas no canto de seus olhos. Apertava a joia com tamanha força e intensidade que os gumes da safira retalhavam suas mãos de leve. Rose. 1912. Colar.

Não, ele não desistiria. Jack martelava em sua mente a decisão que se formou no instante em que conheceu a história do colar, cuja jovem dona se jogou no frio Atlântico para uma morte solitária. Rose. 1912. Colar. O viajante ancorava-se no mantra, já se sentindo mais morto do que vivo, mais certo do que em dúvida de que conseguiria salvar Rose. Talvez seu entusiasmo inerente fosse amor, ele se questionou. Mas como poderia amá-la conhecendo tão pouco? O medo ainda era maior que tudo; de falhar, de aceitar o que sentia, de deixar de lado a ciência do quão descabido e apressado tudo aquilo soava. Jack tentou voltar a se concentrar contando as batidas atropeladas de seu peito. Rose. 1912. Colar. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa.

As mãos voltavam ao seu controle, enquanto o peso da gravidade no recinto pesava mais que um transatlântico, bem mais do que precisou ao viajar para encontrar o avô dois anos atrás. Mas pesava. Estava dando certo. Sabe-se lá por qual motivo, Jack conscientizava-se não só de estar quebrando a regra do impossível, contudo também de se transportar para décadas, séculos atrás, o corpo sendo abraçado finalmente por uma das realidades.

Jack.

Ele escutou a voz uma última vez antes de perder os sentidos. Na sua mente ou não, Rose deixava de chamá-lo para, então, dar lhe as boas-vindas. O choro de dor passou a correr livremente por sua face quando percebeu que não havia mais a batida entre seu peito e o Coração do Oceano.

Havia duas.


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