Nos últimos cinco minutos daquela fatigante dança de iniciação, Chuvysco foi acometido por algumas visões bastante esquisitas. A maioria delas envolvia coisas tristes de seu passado, perigos e chuva. Chuva, o que seria dele sem a chuva para lhe atormentar os sonhos e lhe dar devaneios esquisitos? Não poderia negar, estava bastante cansado, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Aquela hora parecia que não passava nunca, e de fato, em sua cabeça tinha durado umas quatro horas a mais do que realmente durou. Mas se desistisse, jamais teria a chance de ter seu emprego de volta. Cinco minutos, apenas cinco minutos, nada mais do que cinco minutos.
- Cinco minutos, Chuvysco. - falou Sangrento, enquanto rezava de cima de seu palanque. - Faltam cinco minutos para se tornar um Repugnanty.
"Cinco? Mas que coisa, isso não acaba nunca?"
As pernas, os braços, as costas e o pescoço doíam horrores. Nem em seus momentos mais atléticos, chegou a suar tanto quanto nesta situação. Nem mesmo quando se permitiu ir à academia há alguns anos, algo que não chegou a durar nem quarenta e cinco minutos.
"Pelos deuses, como conseguem fazer esses exercícios intermináveis?", disse ele no seu primeiro dia de academia, um pouco antes de cancelar sua inscrição. "Olha moça, desculpa cancelar assim tão rapidamente, mas prefiro gastar o pouco dinheiro que eu ganho com álcool e bonequinhos colecionáveis de Confronto Nas Estrelas".
"O que foi dançado, jamais poderá ser desdançado"
"O que foi dançado, jamais poderá ser desdançado"
"O que foi dançado, jamais poderá ser desdançado"
Aquela reza sem sentido nenhum era proferida sem cessar, e aquilo, juntamente com a música que Sangrento havia colocado para a dança de iniciação já estava fazendo o pobre vendedor arrancar os cabelos. A música escolhida era uma mistura de eletrônica com bossa nova, funk, trash metal, novo clássico universitário, pós-punk moderno-reacionário, com uma pequena pitadinha de tecno-gótico congolês. Enfim, não era tão ruim se ouvida por algumas dezenas de vezes consecutivas.
- Mais quatro minutos, Chuvysco. - disse ele mais uma vez. - Aguente firme, está indo muito bem.
"Mas em que Universo paralelo eu estou indo muito bem?", se questionou, enquanto escorria de sua testa pingos de um suor bastante salgado para o seu gosto.
Aquele Y gigantesco pegando fogo do seu lado também não ajudava. O calor o torturava, fazendo-o pensar seriamente em tirar a túnica negra que vestia. Mas antes mesmo que se atrevesse a retirá-la, seu líder o repreendeu:
"Se tirar a túnica, não será aceito"
"Mas eu estou morrendo de calor. Dá para pelo menos apagar ou diminuir esse fogo aqui?"
"Claro que não. Isso aqui é um ritual. Onde já se viu"
Lá pelos três minutos faltantes, Chuvysco começou a se sentir estranho, esquisito, como se estivesse sendo observado. Não era nenhum dos Repugnantys, já que todos estavam cirandando em seu entorno, e Sangrento, de olhos bem fechados em cima daquele palanque. Enquanto entregava alguns passinhos toscos dos anos oitenta, espreitou sua visão através da mata escura que envolvia todo o acampamento. Por alguns segundos, o breu foi seu único ponto de vista. Aquilo era bastante estranho, pois mesmo sem vislumbrar nada de muito sugestivo, sentia que daquela escuridão toda vinha olhos bisbilhoteiros. Quando que num rápido balançar de cabeça, Chuvysco foi capaz de divisar um vulto meio azulado, tendo pouquíssima nitidez. Quando voltou sua cabeça ao local que teria visto o tal vulto, já nada mais havia, com o breu retomando por completo as proximidades do acampamento.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Vendedor de Guarda-chuvas Volume II
HumorDepois que descobriram por quem Pioggia foi sequestrado e as condições para libertá-lo, os Repugnantys, agora com Cris assumindo a identidade de Chuvysco, partem numa busca implacável contra o tempo, afim de conseguir a malemolência perfeita, ao mes...