Olhos de cervo

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Emília não sabia por que tinha esses sonhos estranhos.
Toda vez que estava chateada eles se repetiam.
Estavam fadados a se repetirem de novo e de novo.
Faziam três anos que morava com sua tia Madeleine.
Era um nome estranho mas era uma mulher gentil, mesmo que um tanto desorganizada com seus horários.
No sonho ela sempre estava sentada com no banco da frente da caminhonete de seu pai.
Os dois estavam andando pela estrada escura, a noite já caíra e a madrugada começaria a raiar em pouco.
Estavam voltando para casa. Papai estava com seu macacão do trabalho.
Ele estava sério como sempre.
E então, como em todas as vezes, um filhote de cervo castanho pula em frente ao automóvel apenas para ser atropelado.
Em alguns dias, dos mais perturbados, Emília conseguia se lembrar dos grandes olhos azuis do cervo, cercando suas pupilas dilatadas e procurando suas córneas. O cervo sempre olhava para ela.
Implorava por algo que Emília não poderia dar.
E então ela acordava.
Com olhos lacrimejados.
Havia algo tão estranho e familiar naquele cervo.
Lembrava-a de uma festa a fantasia em que ela e seu amigo haviam se fantasiado de cervos.
Foi no mesmo ano em que o serial killer da região foi encontrado.
Mas ela jamais imaginou que seria seu pai.
Ele estava preso à quatro anos.
E nunca deixava a menina entrar em sua oficina. E Emília nunca havia se perguntado o motivo até a polícia invadir.
O cheiro de carne podre, os corpos enrolados em tecidos pendurados por cordas ao teto.
A última vez que vira seu pai.
Ele parecera diferente de todas as outras vezes em que o vira.
Parecia um animal selvagem, lutando e rosnando contra as algemas.
Ela se lembrava se correr até a casa vizinha e procurar seu amigo.
Uma criança buscando conforto em outra.
Mas seu amigo não estava lá, de fato, nunca mais ouvira dele.
Mas mesmo assim, ainda guardava as fotos em que os dois apareciam juntos.
Ele estava quase sempre de olhos fechados.
Emília se lembrava bem da sensibilidade que seu amigo tinha nos olhos.
Seus grandes orbes azuis e brilhantes.
A menina se ajoelhou no chão e dobrou seu corpo, se sustentando com as mãos.
Sua barriga embrulhou e ela gorfou.
Quando atropelaram o cervo castanho de olhos azuis seu pai o jogara na parte de trás do carro.
Mas não era realmente um cervo, era? Fantasia se misturava com lembrança e dor e Emília se perguntou o que havia de fato voltado na caçamba da caminhonete aquela noite.

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