End of me

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Dedico essa história ao Alex, o príncipe dos mares.

Algumas músicas me inspiraram bastante no processo criativo e exatamente por isso ela tem uma playlist cujo link está na bio do meu perfil, se quiser é só dar uma olhadinha lá ;-)

Gostaria também de deixar um agradecimento especial a @mooncact que fez com muito carinho a capinha linda dessa fic. Thanks.

Avisos: homofobia, violência doméstica, pensamentos auto depreciativos.

O vento fresco atingia minha pele sem delicadeza, eriçando os pelos e provocando um leve ardor. Os cabelos estavam revoltos, emaranhados, mas eu não podia me importar menos, só queria encher meus pulmões de ar salgado e cheio de vida, sendo abraçado pela maresia. Nem ao menos precisava abrir os olhos para enxergar o mar à frente, o conhecia como ninguém, o compreendia com todos os sentidos.

O mar estava agitado naquele dia e o barco balançava bastante, entretanto eu já estava tão acostumado que não afetava muito o meu equilíbrio, então eu abri os braços sorvendo o máximo daquelas sensações acolhedoras, mesmo que diante de águas tão bravias e inclementes. O entusiasmo crescia à medida que o sentimento de quase pertencimento me inundava, mas não durou. A ardência na nuca, provocada pelo tapa desferido por meu irmão, me lembrou que o acolhimento era uma ilusão, um sonho para tolos. E era isso que eu era: um tolo.

— Já tá dormindo acordado de novo — disse em um tom que misturava raiva com zombaria. — Vê se faz alguma coisa útil. Pelo menos pra limpar gente como você serve.

Era sempre assim. Todos os dias meu irmão arrumava um jeito de me menosprezar e, geralmente, tinha a ver com minha sexualidade. Ele era grosseiro e preconceituoso, mas eu não conseguia ter raiva dele, na verdade eu tinha pena. Não apenas dele, mas de toda a nossa incrível família de quatro pessoas.

Eu era o mais novo de três irmãos e vivia com meu pai e o irmão do meio em uma casa próxima à costa da maior praia da região. Meu pai era um homem amargo e maltratado pela vida, que perdera a esposa muito cedo — no meu nascimento — e que se deixou ser esmagado pela dor da perda e da imensa responsabilidade que lhe sobrara. Ele passou a beber muito e deixou a responsabilidade de cuidar de mim para a minha irmã dez anos mais velha, já o garoto do meio, cinco anos mais velho do que eu, era quem ele carregava para todo o lado e ensinava seu ofício de pescador. E meu pai nunca escondera a preferência por meu irmão. Aquilo me magoava, pois ele tratava a mim e a filha mais velha com desdém, além de fazê-la de empregada doméstica.

Quando eu tinha catorze anos ela se foi em uma noite fria e chuvosa, com apenas uma mochila nas costas, tentar uma vida melhor na cidade, mais precisamente na capital, mas não sem antes afastar a minha franja e estalar um beijo cálido na testa. "Um dia, quando eu conseguir me estabelecer em algum lugar, eu busco você, querido. Isso não é um adeus." Foi o que ela disse antes de fechar a porta que a separou de mim. Isso foi há alguns anos e eu nunca mais a vi. Ela me telefonava de vez em quando para saber como eu estava, se tinha terminado os estudos, se eles não estavam sendo muito duros comigo, no entanto nunca dizia nada sobre si mesma, todas as minhas perguntas eram respondidas vagamente. Ela não estava bem, a vida ainda não estava sendo fácil, isso estava óbvio, e meu coração se apertava. Nós não passávamos de um bando de fodidos.

Meu irmão a cada dia se tornava uma cópia mais perfeita do nosso pai e isso não era nada bom. Tive sorte em ter sido criado por ela, eu a admirava tanto. Independentemente de como estivesse a vida na cidade, eu sempre admiraria a coragem que minha irmã um dia tivera de se emancipar, algo que eu muito provavelmente jamais faria.

Apesar de a casa em que eu residia fosse um lugar que eu não podia chamar de lar, eu amava o mar, a areia, a sinfonia das gaivotas pela manhã, assistir ao nascer e pôr do sol. Eu não sabia viver de outra forma e nem executar outro ofício. Nem mesmo saberia como começar uma vida diferente, a ideia parecia inconcebível, e eu acabava me contentando a viver uma meia vida: uma lamentável quando estava na companhia dos familiares, e uma satisfatória quando contemplava a imensidão azul. O mar parecia tão ou até mais solitário do que eu. Contudo, justamente por combinarmos nesse quesito, eu me sentia de certa forma acolhido. A praia, o oceano infinito, era o mais próximo de um lar que eu conhecia.

What the water gave meOnde histórias criam vida. Descubra agora