CAPÍTULO 08

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– Sabe, Diana, eu não sei o que tem na cabeça desses homens...
Eu que não sei o que tem na cabeça dessas mulheres como a senhora, dona Rebeca, que têm dinheiro, têm condição de pedir o divórcio e seguir em frente belíssima e ainda continuam com o cafajeste do marido. Eu que não sei o que tem na cabeça dessas mulheres, porque as mulheres como a minha mãe – que foram submetidas à pressão dos maridos para se manterem completamente como donas de casa contra as suas próprias vontades e cederam a diversos tipos de abuso por não terem dinheiro próprio e, consequentemente, não terem autonomia para pegarem os filhos e irem embora – aguentam muito mais, não deveriam aguentar nem um pouco e não reclamam nem dez por cento do que a senhora reclama, dona Rebeca, mesmo que elas tivessem total razão em reclamarem. Eu que não sei o que tem na cabeça dessas mulheres, como a senhora, de não perceberem que a atitude que precisa ser tomada só depende de você, porque tem mulheres fora dessa sua bolha perfeita que dariam tudo para terem a chance que a senhora tem, dona Rebeca.
Merda.
Respira, Diana, você não pode falar uma coisa dessas. Você precisa do dinheiro pra terminar de pagar a faculdade a ajudar sua mãe a quitar as dívidas. Afinal de contas, você é uma dessas mulheres que acabam em situações humilhantes por causa de homens que simplesmente foram babacas além do limite da babaquice.
É claro que eu não disse nem um 'a' do que eu pensei. E eu não falaria em divórcio por nada nesse mundo, porque as mães para quem eu trabalhava se sujeitavam a tudo, menos a um divórcio.
– A senhora quer que eu tire o Lucas de casa? Dá pra lervar o Lucas no parque da Barra, no shopping, pra dar um passeio na orla...?
– Acho que seria ótimo, sabe? Não quero que ele me veja assim.
– Claro, o que a senhora precisar. – Disse, tentando soar compreensiva. – Vou só trocar o Lucas e...
– Diana, leva no parquinho do condomínio mesmo, vou sair com ele mais tarde, aí você pode ir embora mais cedo, tá ok?
Apenas assenti. O que mais eu ia falar? Enfrentar a patroa? Nunca em vida! Era uma lei suprema: não diga o que elas não querem ouvir. "Ah, Diana, mas é um caso em que a mulher tá se sentindo humilhada...". Ok, tudo bem, eu assumo... Ela podia até precisar de alguém que a sacudisse pelos ombros e gritasse na cara dela que ela podia sair do casamento, que tudo ficaria bem e que ela não tinha motivo para preocupação qualquer. Mas aí como ficaria o meu dinheiro? Essa era a parte difícil que ninguém entendia. Eu não queria sair como a babá enxerida que deu opinião sobre o casamento dos patrões, opinião essa que ninguém pediu, e acabou despedida enquanto os dois continuaram casados, a mesma imagem de casal perfeito estampada em toda e qualquer foto do Instagram que um deles postasse sobre o outro em supostas datas comemorativas.
Era por isso que eu não namorava. Bem, esse era um dos motivos. A burocracia de lidar com um relacionamento quando todos aqueles que eu acompanhava de perto davam errado era desanimadora. Mas, ao menos, eu tive um alívio para aquele dia. Quando coloquei os pés no playground do condomínio, avistei Sofia e Lucca sozinhos.
– E aí, Sô!
– Oi, Di! – Ela sorriu para mim enquanto Lucca e Lucas se uniam para começarem uma nova brincadeira. – Veio espairecer hoje?
Eu bufei.
– Dia complicado. – Sentei ao lado dela no banco enquanto ficava de olho nos dois. – Como vão as coisas com os patrões?
– Ih, tá complicado também.
– Problemas no paraíso?
– Que paraíso? – Ela aumentou a voz em uma oitava, no mínimo, e cruzou as pernas, recostando-se no banco para olhar Lucca melhor. – Aqueles dois vivem em um pé de guerra terrível, é incrível como ainda não se mataram. Pelo menos, me mandam descer com o Lucca toda vez que as coisas começam a esquentar.
– Pelo menos, isso, né? Ele acaba se exercitando e...
– Que 'se exercitando' que nada, Di! Lucca só se mexe se chegar outro coleguinha, que é geralmente o Lucas porque ninguém mais obriga os filhos a se mexerem nesse país de merda.
Eu segurei o riso. Estava com um problema com os patrões também, mas Sofia estava realmente irritada dos pés à cabeça.
– Pode me chamar quando for descer com ele... – Sugeri. – Aí eu trago o Lucas também, deve até ficar melhor pra você, porque aí não precisa se dar o trabalho de participar nas brincadeiras doidas que eles arrumam.
– Você tem algum defeito, Diana? – Ela arqueou uma sobrancelha e virou para mim.
– Acho que não tô te entendendo.
– Tudo o que eu falo de ruim, você consegue responder com positividade.
– Como assim?
– Eu reclamo de ter que trazer o Lucca aqui pra baixo porque os patrões tão brigando e você simplesmente... – Ela revirou os olhos e suspirou. – Ah, deixa quieto. Eu queria ser como você, isso sim.
– Pode falar, Sô.
– É que você tá sempre tão calma, sempre tão de boa com a vida...
– Às vezes, é só uma máscara.
– Você finge? – Ela questionou, e eu desviei o olhar quando percebi que Sofia se viraria para mim. – Porque, se você finge, deveria ser atriz. Aí eu provavelmente trabalharia pra você, quem sabe... E talvez você morasse aqui também, e seu filho fosse ser sedentário como todos os outros e... Lá vou eu reclamando de novo!
– Tá tudo bem, botar pra fora é bom de vez em quando.
– Eu boto pra fora até demais. – Ela riu.
Sophia fazia uma coisa que eu jamais faria: falar mal de patrões. Desde que comecei a trabalhar como babá, só atendi um casal fora da Barra da Tijuca – zona Sul, um inferno, inventei a pior desculpa do mundo para cair fora do emprego porque os dois eram terríveis como patrões e piores ainda como pais. De resto, todos eram dali. O primeiro patrão endinheirado, consegui por conta de contatos da minha mãe. Ele foi só o começo e, desde então, eu trabalhei entre os bem mais ricos que eu. Bem... Os ricos, simplesmente, porque eu não era rica nem de espírito.
A questão era a seguinte: e se eu abrisse a boca pra alguém e chegasse no ouvido de algum amigo dos meus patrões ou de possíveis futuros patrões? Eu pensava um monte de merda sobre eles, claro, tinha vontade de dar uns tapas na cara dos dois para ver se eles acordavam para a vida, mas ficava tudo dentro da minha mente deturpada pelos anos de trauma com o casamento dos meus pais. Sophia falava mesmo, com todas as letras. Eu nunca repetiria o que ela me confessava quando a gente se encontrava no playground, mas também não confiaria em alguém que não fosse minha mãe para falar tanto a esse ponto.
– Tia Di, tia Di! – Lucas se aproximou, gritando e com os punhos fechados na frente do corpo, cruzando os braços logo em seguida. – Escolhe uma mão.
– Essa aqui. – Eu toquei na sua mão esquerda.
Lucas abriu, revelando uma flor que, pelo que eu podia ver de onde estava, ele e Lucca haviam arrancado de um canteiro perto do escorregador para crianças menores. Abri o maior sorriso que pude e fiz cara de surpresa.
– Uau, Luquinhas! Que linda!
– É pra você, tia Di.
– Pra mim? – Eu aumentei o volume, fingindo mais surpresa ainda, e peguei a flor, dando um beijo em sua bochecha logo depois. – Obrigada, meu amor.
O pouco pedaço do cabo que ainda havia na flor, eu encaixei no meu cabelo, tentando prender atrás da orelha. Ele sorriu e alisou a lateral do meu cabelo.
– E aí, ficou bonita?
– Ficou, tia Di.
Do jeito que ele falou, senti que tinha algo errado. Notei suas pernas, tensas. Lucas estava apertando uma contra a outra. Sorri então quando notei o recado silencioso dele, não falaria nada certamente por vergonha. Alerta de número 2.
– Quer ir pra casa, Luquinhas?
Ele afirmou com a cabeça incisivamente. Nós nos despedimos de Lucca e Sofia e seguimos na direção do elevador. Ainda não tínhamos parado no andar e já dava para ouvir os gritos. Tirei o telefone rápido do bolso e pluguei o fone de ouvido. Abri o YouTube, dei na mão dele e encaixei os fones em seu ouvido. Ele disparou para o banheiro quando passamos pela porta de entrada com o meu celular na mão. Não importava, só não queria que ele escutasse, e eu não me importaria nem se meu celular caísse no vaso por um descuido dele. Então fui para a cozinha e fiquei escondida atrás da geladeira, de onde ninguém me veria facilmente e de onde eu conseguiria escutar Lucas me chamando quando acabasse.
Você não vale nada, Diego. Nada! É inconcebível que você ainda acredite que podemos viver desse jeito. – Rebeca gritou.
Desculpa, eu esqueci que você é a mestre do casamento perfeito. – Eu podia não conhecer Diego tão bem assim, mas o tom de ironia era claríssimo para mim. – Você nunca foi minha mulher de verdade. Queria tanto ficar comigo pra quê? Por dinheiro? Status? Pra quê, Rebeca?
Não é do seu interesse, caralho!
Ah, mas é do meu interesse sim, porque eu só to com você ainda porque você ameaçou tirar o meu filho de mim. Então seja mulher o suficiente pra me dizer que porra você quer de mim.
Quer saber? Foda-se!
Você não tem o mínimo de consideração mesmo, né, Rebeca? Eu realmente tô dando o meu máximo pra não te ofender porque sei que não é o correto, mas você insiste em...
– Tia Di, acabei!
O grito de Lucas ecoou pelo apartamento. Meu coração gelou no mesmo instante em que as vozes, que provavelmente vinham do quarto do casal, se calaram. Respirei fundo e fui para o banheiro de Lucas. Afinal de contas, não tinha para onde fugir. A primeira coisa que ele fez foi entregar o celular de volta para mim.
– Eu gosto de Picapau. – Ele disse, sorrindo, sobre o desenho que eu tinha colocado para ele.
– Verdade? – Perguntei, Lucas afirmou com a cabeça. – A tia também gostava desse desenho quando era criança.
– Você já foi criança, tia Di?
– Claro, todo mundo foi. – Terminei o que estava fazendo e ajudei Lucas a se vestir. – Vamos voltar lá pra baixo?
– Eu quero jogar videogame.
Não nega, Diana, ele pode jogar.
– Tudo bem então, vamos lá pra sala e...
Eu estava começando a sair do banheiro quando senti o esbarrão forte em mim. Fui derrubada com tudo no chão e bati com a cabeça na parede oposta à porta do banheiro no corredor. Antes que eu raciocinasse o que tinha acontecido, tinha uma mão apontada para mim e uma pergunta reverberando pelo apartamento.
– Tá vendo o que você fez?
Eu só sentia a cabeça doer e acabei aceitando a mão que me foi estendida.
– Você tá bem, Diane? Desculpa, eu fui o errado, não tava olhando pra onde eu tava indo.
– Tá tudo bem. – Resmunguei, fechando os olhos e fazendo pressão no lugar da pancada.
– Vamos pra cozinha, Di, – Rebeca sugeriu. – é bom colocar um gelo nisso aí.
Abri os olhos novamente. Lucas ainda estava dentro do banheiro, perdido no meio de uma confusão que ele mesmo nem sabia como tinha começado.
– Eu tô bem.
– Precisa que te leve em uma emergência?
Com que plano de saúde, madame? Vocês nem devem saber o significado de UPA!
– Não, tá tudo bem. Eu vou pegar um pouco de gelo.
– Deixa que eu pego. – Diego se prontificou.
Rebeca me ajudou a sentar no sofá. Quando Diego voltou com uma bolsa cheia de gelo e uma toalha de rosto, notei que ele tinha uma mochila grande em suas costas. Lucas falou alguma coisa com ele, protestando contra a saída do pai. Diego desconversou e conseguiu desvencilhar-se do filho.
– Você tem certeza de que não quer ir ver um médico, Diana?
– Tenho sim, dona Rebeca.
– Eu peço desculpas pelo Diego, ele só tem feito merda.
– Merda é uma palavra feia, mamãe! – Lucas se intrometeu.
– Querido, agora não.
Agora sim, eu pensei, ele devia estar mais inserido nisso do que eu, porque ele é família. Ou vocês dois, pais dele, esqueceram disso?
– Diana, eu posso te levar ou ligo pro Diego, peço pra ele te deixar no caminho. Quer que eu peça pra ele te levar em casa? Ou quer pedir um Uber?
– Vou ficar bem, a compressa vai ser suficiente. – Insisti mais uma vez.

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