CAPÍTULO 04

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– Então o emprego é bom?
– Lucas, cuidado com os coleguinhas! – Gritei através da tela que limitava a área interna do playground infantil temporário do Barra Shopping. – Ah, Gi, paga bem, os patrões são bons.
– Ele é bom? – Minha amiga apontou para Lucas, descendo pelo escorrega enquanto eu o observava.
– O Lucas?! – Eu só ri. – Giselle, você não tem ideia da paz que é cuidar dele. Acho que ele é a criança mais tranquila de quem eu já tomei conta desde que comecei a trabalhar como babá.
– Eu ia perguntar se os pais são bons, mas você tá com a criança num shopping no dia que a gente marcou pra fazer alguma coisa porque era sua folga.
– O pai dele tá viajando com o time. A mãe teve uma emergência familiar.
– Você já escutou desculpas melhores que essas de gente que pagava menos, Di.
– Eu sei, mas acontece. Não tem problema, eu vou ficar bem. Eu vou receber bem.
– Tia Di, olha o que eu sei fazer. – Lucas chamou a minha atenção de dentro do playground e deu uma estrelinha.
– Muito legal, mas cuidado pra não acertar ninguém, viu?
Ele saiu correndo e pulando na direção do escorrega maior que desembocava na piscina de bolinhas. Observei atenta enquanto ele desaparecia entre as bolas azuis e, logo depois, ressurgiu e falou alguma coisa com o amiguinho ao lado.
– Você me escutou, Di?
Virei para Giselle, um pouco atordoada.
– Não, desculpa, eu tava prestando atenção no Lucas.
– Eu perguntei como o Carlos tá lidando com você trabalhando pra um dos maiores ídolos dele.
– Carlos é mais novo que eu, então dá pra impor respeito. – Falei. – Ele tentou fazer graça, mas eu cortei logo. Acho que ele entendeu o recado.
– Às vezes, eu queria entender sua mãe...
– Por quê?
– Ela mima seu irmão demais. Será que ela não vê que ele tá ficando um adulto horrível por causa disso?
– Ah, Gi, a minha mãe quer compensar pra ele não se sentir abandonado pelo pai.
– Mas seu pai abandonou vocês, com todo o respeito.
– Vai entender. – Dei de ombros ao mesmo tempo em que a recreadora chamou o nome de Lucas, acusando que seu tempo havia acabado, então nós nos aproximamos da saída das crianças. – De qualquer forma, falta pouco pra eu formar, começar a trabalhar e ajudar minha mãe a ser independente.
– A advogada falou mais alguma coisa sobre o divórcio?
– A gente tá aguardando o juiz se pronunciar sobre uma petição aí que eu não entendi muito sobre o que é, mas que vai ser pra provar que ele deve indenização a ela.
– Tia Di! – Lucas saiu suado do brinquedo, dando o assunto por encerrado entre eu e Giselle. – Você viu a cambalhota que eu dei no tapete?
– Vi sim, você fez muito bem.
– Você tirou foto pra enviar pro papai?
– Tirei e já enviei.
– Ele respondeu? – Os olhinhos brilharam na minha direção, e eu fiquei triste por saber que a resposta não agradaria.
– Seu pai gostou muito! – Menti, mesmo sabendo que não era uma atitude muito correta ao se tratar de uma criança. – Mas o papai não podia falar porque ele tinha que treinar.
– Poxa, ele sempre tem que treinar. – Lucas cruzou os braços e emburrou a cara.
– Mas o papai precisa treinar pra ficar bom e ganhar dinheiro pra comprar sorvete e bolinhos pra você.
– Nós podemos tomar sorvete, tia Di?
– Eu tenho que ver com a sua mãe.
Peguei o celular e comecei a mandar mensagem para Rebeca, torcendo para que ela olhasse o celular naquele meio tempo – ou então eu teria que dar algum doce escondido para a criança contra a recomendação dos pais. Enquanto isso, nós íamos em direção à praça de alimentação do shopping. De qualquer forma, Lucas precisava comer alguma coisa, nem que fosse um sanduíche natural, que eu descobri que não fazia ideia de onde comprar porque eu simplesmente preferia ir direto às porcarias. Um ótimo exemplo para crianças!
– Tia Di, eu quero o brinquedo do Dois Irmãos! – Lucas gritou e puxou minha blusa.
– Dois Irmãos?! – Giselle arqueou uma sobrancelha.
– É um filme da Disney. – Revirei os olhos e respondi. – Lucas, a mamãe tem que deixar.
– Você pode pedir o McLanche Feliz com tomate cereja e danoninho ou purê de maçã. – Giselle sussurrou ao meu lado.
Respirei fundo e olhei o celular mais uma vez. Na conversa com Rebeca, constava que ela havia estado online menos de um minuto atrás. Bufei, impaciente, enquanto me perguntava como ela podia simplesmente ignorar uma mensagem da pessoa que estava com o filho dela. Nesse mesmo instante, o meu celular tocou. Arregalei os olhos ao ver quem era mas atendi de qualquer forma.
– Oi, Diego. Boa tarde.
Boa tarde, Diane. A Rebeca disse que o Lucas tá com você.
– Tá sim, nós viemos ao shopping.
Mas por que ela precisou deixar ele com você hoje?
– Ela disse que teve uma emergência familiar e perguntou se eu podia ficar com ele à tarde.
Por um segundo, eu podia jurar que tinha escutado Diego soltar um "puta que pariu" baixinho do outro lado da ligação.
A Rebeca acertou com você o extra?
– Ela disse que conversaríamos melhor sobre isso amanhã, quando ela estivesse em casa.
Eu vou transferir pra sua conta agora, ok?
– Não precisa, eu...
Fica tranquila, Diane, eu resolvo isso com ela. Você pode passar pro Lucas, por favor?
Eu pensei em tentar argumentar, mas só respondi um "claro" que eu quase não ouvi e dei o telefone na mão de Lucas, explicando que o pai queria falar com ele. Claro que o brilho no olhar dele chegou a aumentar, e suas mãozinhas pegaram rapidamente o celular da minha mão. Giselle olhou curiosa para mim logo depois, enquanto eu tentava ignorar o que quer que Lucas estivesse falando com o pai simplesmente porque não era da minha conta.
– O que houve?
Dei de ombros.
– Sei lá, algum problema.
– É sempre assim?
– Às vezes, mas o Lucas fica bem, então não é problema meu.
– Vamos no McDonald's mesmo pra comprar o lanche dele?
– Não sei. To com fome também, mas não posso comer besteira na frente dele e dar um mau exemplo.
– É só você falar que ele não pode e ponto final.
– O Lucas tem quatro anos, ele não entende as coisas assim.
– Entende sim, você tá subestimando a criança.
– Acho melhor esperar pela resposta da mãe dele, Gi.
– A mãe dele vai responder? Porque, se ela não falou nada até agora e você disse que ela tá numa emergência...
Eu suspirei e deixei os ombros caírem.
– Tia Di! O papai quer falar com você. – Lucas me chamou, dando o celular para mim.
– Obrigada, Lucas. – Sorri para ele, peguei o aparelho e coloquei na orelha logo em seguida. – Pode falar, Diego.
Vocês tão em qual shopping?
– No Barra Shopping.
Você pode levar o Lucas pra casa? A minha mãe vai te encontrar lá.
– Distrai o Lucas rapidinho. – Sussurrei para Giselle após tampar o microfone do meu celular, levantando da mesa onde estávamos e dando três passos, o que seria suficiente para que Lucas não ouvisse. – Eu posso só dar um lanche pra ele antes? Nós acabamos de parar na praça de alimentação, ele já tinha pedido. Eu só to esperando a dona Rebeca confirmar se posso comprar um lanche no McDonald's pra ele.
Pode sim, eu to confirmando. Você acha que leva quanto tempo entre pedir o lanche e comer?
– Ah, uns quarenta minutos, no máximo. A fila tá um pouco grande.
Tá ok. Pode pedir um lanche pra você também, eu te reembolso depois. Você leva o Lucas pra casa quando terminar?
– Levo sim, sem problemas.
Eu vou te passar, por mensagem, o número da minha mãe. Você pode falar pra ela quando tiver saindo do shopping?
– Posso, claro.
Perfeito então, Diane. Eu te agradeço e peço perdão pela inconveniência da minha esposa em te atrapalhar no seu dia de folga.
– Não tem problema, eu tava por perto.
Mesmo assim, você não precisava ter trabalhado hoje. Vou fazer a transferência do extra pra sua conta agora. Assim que der, manda o valor do lanche de vocês que eu transfiro também o valor.
– Tá tudo bem, não precisa.
Precisa sim, Diane. Vou ficar aguardando o valor. Mais uma vez, obrigado.
Ele se despediu e desligou. Eu engoli em seco, pensei estar encrencada. Se tinha uma coisa que eu odiava naquele tipo de serviço era quando os pais davam ordens diferentes e eu ficava perdida, como cego em meio a um tiroteio, imaginando quais ordens deveria seguir e quais deveria ignorar. Nada daquilo parecia certo, mas eu procurei poupar Lucas, como havia feito com outras crianças antes. Eu, mais do que ninguém, sabia o quanto o relacionamento instável dos pais podia custar caro no futuro.
Dona Catarina era uma senhora de muito bom humor, sempre disposta a tudo e simpática a qualquer custo. Ela era mais simpática que seu próprio filho, um estranho insistente quando se tratava de ser cordial com os funcionários – descobri, depois, que não era só comigo toda aquela educação. Não conhecia muito do passado dele mas, a julgar por certas atitudes, imaginava que havia alguma história ali que fazia com que ele agisse daquela forma. Nesse quesito, ficava bem claro que dona Catarina havia criado Diego muito bem.
Eu deixei Lucas com a avó na portaria de seu condomínio e, logo depois, peguei outro Uber para voltar ao shopping, onde Giselle me esperava depois de eu pedir para ir sozinha. Por mais que estivesse na minha folga, não imaginava ser bem visto aparecer com uma pessoa de fora por lá. Pessoas ricas tinham padrões. Elas estavam ok com terem suas vidas invadidas por alguns estranhos, mas não admitiriam, de jeito nenhum, que houvesse outras intromissões não autorizadas em suas existências. Não imaginava que Diego ou até mesmo dona Catarina seriam esse tipo de pessoa, mas achei melhor prevenir. O emprego era bom, pagava bem, e eu precisava dele a todo custo.
– Será que fica muito tarde pra gente ir no cinema ver alguma coisa? – Giselle perguntou quando eu cheguei de volta ao shopping.
– Não sei se estou afim de ver filme.
– Você realmente ficou chateada com a situação do Lucas, hein!
– Ah, é muita confusão pra eu ficar pensando.
– Será que isso não é ruim pra você?
– Como assim? – Eu me virei para Giselle, que estava mandando mensagem para o namorado enquanto falava comigo.
– Seu emprego, Di. Você trabalha com famílias podres de ricas e sempre deixa escapar que a relação dos pais com os filhos é problemática. Eu me pergunto se você já não viveu o suficiente disso na sua própria casa e se isso não pode piorar como você se sente a respeito de tudo o que aconteceu.
– Eu to bem, Gi.
– Tem certeza?
– Tenho. – Declarei. – E, no final das contas, eu preciso pagar a mensalidade da faculdade e ajudar com as despesas em casa enquanto o juiz não termina de analisar o divórcio.
Ela bufou e revirou os olhos.
– Seu pai é um grande filho da puta.
– Isso ele sempre foi, casado com a minha mãe ou não.
– A sua mãe tá bem com isso?
– Nós estamos vivendo com menos conforto, é claro, e as coisas não estão exatamente simples, mas estamos dando conta, e ela se sente mais livre agora do que se sentia quando tava com ele.
– Isso é bom, né?
– Tem que ser. – Eu ri. – Mas acho que ela nem pensa muito nisso. O divórcio tá rolando, mas acho que ela tá se sentindo muito bem com a pensão que meus avós deixaram pra ela. Acho que ela nem tá ligando pro dinheiro do meu pai, ela diz que não quer.
– Como ela não quer?! Seu pai tá podre de rico, enriqueceu do lado dela. Como ela não quer o dinheiro? É dela por direito!
Enquanto Giselle protestava, chegou a nossa vez na fila de atendimento para o totem de sorvete do McDonald's. Pelo menos, eu já podia comer um belo de um McFlurry de Ovomaltine com calda extra sem ter que me preocupar com dar o bom exemplo para Lucas ou não.

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