CAPÍTULO 06

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Mais um dia, mais uma situação desconfortável. Eu estava esperando uma decisão com a cara mais fingida e mais incômoda possível. Não cansava de ficar pior. Então Rebeca saiu do corredor, a cara mais falsa que a minha e os olhos vermelhos. De maconha que não eram...
– Diana! Oi, bom dia.
– Bom dia. – Respondi, tentando forçar um sorriso.
– O Lucas tá brincando no quarto, já vesti o uniforme nele. Eu tô indo pro trabalho, quem vai te render mais tarde é o Diego.
Eu assenti, mas ela foi tão rápida que não deu tempo para falar mais nada. Antes que eu percebesse, Rebeca já tinha saído pela porta do apartamento. Eu engoli em seco e tentei refazer minha expressão facial. Afinal de contas, mais uma vez, Lucas não tinha nada a ver com aquilo. Como Glória estava atrasada, não liguei muito para procedimentos e fui com ele para o colégio.
Assim que voltei para o apartamento, por continuar sozinha, peguei o notebook que havia levado na bolsa e sentei à mesa de jantar, abrindo os programas necessários para adiantar pedidos de clientes que haviam solicitado meus serviços como freelancer. Estava já com tudo aberto, inclusive um bloco de notas físico que eu gostava de usar com frequência, quando o telefone tocou. Estranhei quando vi o identificador.
– Alô?
Oi, Diane. – Ouvi Diego falar do outro lado. – Você tá no apartamento?
– Tô sim.
Pode me fazer um favor?
– Claro. O que houve?
Eu deixei uma bolsa de viagem pequena em cima da minha cadeira, no escritório. Ela é toda preta, com o símbolo da Adidas em relevo, branco. Tô a dez minutos da entrada do prédio. Você pode levar lá embaixo, por favor?
– Claro. – Respondi. – Vou pegar e descer com ela pra já.
Obrigado, Diane.
Sorri educadamente como se estivesse conversando com ele frente a frente. Já estava quase acostumada a engolir a raiva do nome errado. Suspendi o meu notebook, fechei a tampa dele e segui corredor adentro. Nunca tinha ido tão longe por conta própria, a porta do quarto de Lucas era a segunda, só ficava depois do banheiro social. Sabia que a porta logo ao lado era a do quarto dos seus pais porque já havia visto aberta de relance. Então restavam as outras três portas.
Abri uma, era um escritório, mas claramente feminino demais para ser de Diego. Eu até pensei ser estranho porque, trabalhando para eles por meses, não havia tido nenhum sinal de Rebeca ter um escritório dentro do apartamento, mas também não fiquei pensando muito. Segui para a outra porta, um quarto de hóspedes. É claro, tinha que ser a última.
Entrei no escritório sem jeito. Mesmo que não tivesse ninguém em casa, eu me sentia desconfortável só de saber que estava invadindo o espaço pessoal deles. Então decidi ser o mais rápida possível e fazer nada além do que havia sido solicitado. Fui até a cadeira e já estava saindo quando vi que a bolsa estava aberta. Ia só fechar o zíper quando a embalagem lá dentro chamou a minha atenção.
Eram camisinhas. Definitivamente camisinhas. No plural! Levei segundos até reagir. Primeiro, veio a dúvida... Se ele estava casado, para quê camisinhas? Ok, podia ser um método contraceptivo, mas eu já conhecia o suficiente para saber que era muito improvável. E mesmo que fosse para usar com a esposa... Para quê ele precisava levar aquilo para a rua? Uma fuga da rotina?! Bem, faria sentido se eu não tivesse decorado a agenda dos dois e soubesse que, naquele dia, Diego teria treino o dia inteiro. E mesmo que fosse para uma fuga da rotina... Várias?! Ele era um jogador de futebol, não era uma máquina. Pensamentos demais, Diana.
Tentei tirar os pensamentos da minha cabeça rapidamente. Fechei a bolsa de uma vez por todas e torci para Diego não lembrar de ter deixado o zíper aberto ou ligar os pontos quando abrisse e visse que as camisinhas estavam por cima. De propósito, balancei um pouco a bolsa para tentar misturar o conteúdo. Saí, tranquei a porta e entrei no elevador. Quanto mais perto do térreo estava, mais nervosa eu ficava.
Cheguei à calçada com antecedência. Verifiquei no celular a hora em que Diego havia ligado e fiz as contas. De acordo com ele, estava dois minutos adiantada. Guardei o celular de novo no bolso e fiquei observando os carros que passavam. Em pouco tempo, uma Mercedes branca encostou, e o vidro do carona abriu.
– Ei, Diane! – Diego abaixou o óculos escuro para me cumprimentar, esticando a mão. – Obrigado.
– De nada. – Respondi.
– Ah! Antes que eu me esqueça, ele não vai ter aula de inglês hoje, teve algum problema com a professora.
– Tudo bem, eu vejo se consigo revisar alguma coisa com ele.
– Seria incrível, obrigado por isso também. – Ele sorriu e foi embora.
Fiquei olhando para o carro que se afastava quando algo acendeu na minha memória. O carro. Era o mesmo caro que eu havia visto saindo cantando pneu no meu primeiro dia lá. E a lembrança me fez pensar nas possibilidades sobre o que havia acontecido naquela manhã para ele estar tão irritado – sim, irritado, não atrasado, aquela cantada de pneu não era de gente atrasada. Se bem que, visto o que eu já havia presenciado, não seria novidade nenhuma se eu descobrisse que havia sido mais uma briga dos dois.
Já estava parecendo uma idiota de tanto demorar ali na calçada. Balançando a cabeça, dei meia volta e retornei para dentro do prédio. Cumprimentei o porteiro de novo e peguei o elevador. Antes que eu entrasse de volta no apartamento, o meu celular tocou. Tudo naquele dia estava parecendo um looping infinito de coisas que se repetiam de várias maneiras diferentes.
– Alô? – Atendi.
Diana, Glória acabou de me ligar. Disse que está com um problema familiar grave que vai explicar depois e que vai precisar faltar hoje. Você tem como fazer o almoço pro Lucas hoje? Se não tiver como, pode pedir um delivery com o...
– Eu consigo fazer o almoço, pode deixar.
Usa o que precisar do armário. Se faltar alguma coisa, pode pedir do mercado. Vou te mandar o número do WhatsApp deles, você pode pedir entrega se precisar de alguma coisa.
– Vou ver o que tem e falo se precisar de alguma coisa a mais.
Ok, Diana, muito obrigada.
Eu estava sendo alvo de vários agradecimentos, e não era nem nove horas da manhã. O estranho era que nenhum deles parecia espontâneo. Mesmo assim, eu precisava adiantar a minha vida. Teria a tarde cheia com Lucas por lá, já que ele não teria aula, e aí os meus planos de adiantar meu trabalho iriam por água abaixo, como se fazer o almoço, por si só, não fosse ocupar meu tempo o suficiente. Então estalei os dedos na frente do corpo e alonguei o pescoço.
Abri todos os armários, fiz uma varredura geral. Logo depois, chequei a geladeira e o congelador. Tinha material para fazer macarrão com molho branco e frango sem que eu precisasse ter muito trabalho ou pedir coisa do mercado. Comecei logo para deixar as coisas no meio do caminho, para adiantar. Afinal de contas, ainda teria que ir no colégio buscar Lucas.
– E aí, Luquinhas? Ficou gostoso?
– Onde a tia Glória tá? – Ele perguntou sem responder a minha pergunta.
– Não sei, a mamãe disse que ela teve uns problemas.
– Ela vem amanhã?
– Amanhã é sábado, você fica com a mamãe, lembra? – Falei.
– Hoje é sexta?
– É sim. – Respondi. – Por quê?
– Hoje tem aula de inglês.
– Na verdade, Lucas, a sua professora também teve problemas e não vai poder te dar aula hoje.
– Poxa, todo mundo tá faltando hoje. – Ele emburrou, afastou o prato e cruzou os braços.
Ótimo, pirraça, tudo o que eu precisava para a cereja do bolo daquele dia super maravilhoso.
– Ei, você não vai comer o macarrão que a tia preparou?
De repente, Lucas mudou e os olhos começaram a brilhar. Pirraça bipolar, estava só melhorando.
– Não foi a tia Glória?
– Você tá vendo a tia Glória aqui? – Fiz graça e apontei por cima do meu ombro, na direção da cozinha. – Eu não to. E a gente come comida na caixinha quando a Glória não tá e eu não faço o almoço, lembra?
Lucas fez que sim, deu uma risadinha e colocou um pouco na boca, mastigando devagar.
– Tá gostoso.
– Então come tudo. Depois do almoço, você vai descansar um pouco, pode jogar meia hora e, depois, a tia vai te dar uma aula de inglês. Pode ser?
De novo, ele afirmou com a cabeça. Eu ofereci a palma da minha mão para ele, que bateu com tudo. Sorri e terminamos de almoçar enquanto assistíamos um episódio de Turma da Mônica. Eu deixei Lucas terminando o desenho e fui lavar o resto da louça. E mesmo com trabalho para fazer, eu não conseguia tirar da minha cabeça aquela imagem. As malditas camisinhas.
Embalagem preta, círculo e letras dourados na frente. Eu nunca ia conseguir esquecer aquilo. De jeito nenhum. Podia apostar que, da próxima vez que estivesse em uma farmácia, por mais que tentasse, ia reconhecer a embalagem como se meus olhos fossem um scanner de reconhecimento. Estava mais do que irritada por aquilo não sair da minha mente. Já estava tentando forçar minha mente a imaginar coisas absurdas, como zebras com pescoço de girafa ou aviões voando de cabeça para baixo. Ia ser um longo dia.
– Tia, já posso jogar? – Lucas gritou da sala.
Eu bufei. Apoiei as mãos na beira da bancada, abaixei a cabeça e respirei fundo. Olhei o relógio, já tinha cerca de quarenta minutos desde que ele tinha terminado.
– Pode sim, Luquinhas. – Finalmente respondi. – Meia hora, hein! Vou contar.
Aproveitei a distração dele para adiantar o pouco que dava do meu trabalho. Lucas só não iria ver o que eu estava fazendo no notebook se estivesse no videogame. Televisão, desenho, nem mesmo o jogo solitário com a bola na varanda impediria Lucas de ir lá fofocar e fazer mil perguntas sobre algo que ele jamais entenderia com a idade que tinha.
Eu poderia tentar explicar? Poderia! Mas nem eu entendia direito o que estava fazendo, como dizer a uma criança de quatro anos que meu trabalho no dia era fazer cálculos para descobrir o ângulo perfeito de incidência solar para um cliente? Ia só perder tempo conversando, então acabou que o videogame, naquela tarde, foi ótimo porque não só era do interesse dele, mas meu também, ainda mais quando não se tinha Glória para fazer interrupções sobre fofocas inúteis em que nem eu nem Lucas estávamos interessados.
Deixei Lucas jogando mais um pouco enquanto pensava em técnicas para ajudar no Inglês. Acabei permitindo que ele jogasse um pouco de bola na varanda, esperando que eu conectasse meu notebook à televisão. Abri o Google e chamei Lucas para dentro, colocando-o sentado no sofá mesmo que eu estivesse sentada no chão para ter acesso ao notebook e ir digitando o que fosse necessário. Meia hora depois, eu já havia até oferecido recompensa pela quantidade de acertos que ele conseguisse.
– Beleza, Lucas. Você tem... – Dei uma checada no meu bloco de notas. – Doze pontos.
– É muito?
– Mais ou menos, eu sei que você consegue fazer melhor. Vamos pro próximo.
Deixei de exibir a tela na televisão para que apenas eu visse o que estava fazendo diretamente no notebook. Pesquisei e selecionei a imagem de um pato, abrindo apenas ela para que não houvesse nenhuma dica que Lucas pudesse reconhecer.
– Qual é o nome desse animal, Luquinhas?
Chicken.
– Não... Chicken é parecido, mas não é esse.
Ele fez cara de pensativo. Estava quase fazendo força para tentar resgatar a memória.
Duck! É duck, não é, tia Di?
– Isso mesmo! – Eu comemorei com ele e bati palmas. – Mais um ponto pro Luquinhas. Depois do doze vem...?
– Treze! – Ele gritou de novo.
– Isso aí, muito bem.
– Oi, pessoal. – Tomei um susto com a voz atrás de mim.
– Papai! – Lucas levantou do sofá e saiu correndo, abraçando o pai com tudo. – Papai, eu to com treze pontos no jogo da tia Di.
– E que jogo é esse? – Diego perguntou, ou estava realmente interessado ou fingia melhor do que eu imaginava ser possível.
– Eu ganho um ponto se eu acertar qual é a palavra e, se eu fizer vinte pontos, a tia Di vai fazer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate.
– É verdade? – Ele perguntou e olhou para mim, sorrindo, aí eu imediatamente vi a bolsa e minha mente surtou. – Vamos fazer o seguinte. Eu acerto com a tia Di pra ela poder terminar o jogo depois, tá na hora dela ir embora.
– Eu posso ficar mais um pouco, dá pra terminar.
– Eba! – Lucas comemorou antes do pai dar o aval.
– Me esperem então, quero ver esse jogo. – Diego disse e deu dois tapinhas amigáveis no meu ombro. – Obrigado, Diane, você é incrível mesmo.
Tudo o que eu senti foi nojo da mão de Diego me tocando.

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