Capítulo 1
A greve da Morte
Os pássaros cantavam compondo uma bela orquestra, combinando com o dia fresco e calmo que fazia do lado de fora do cemitério local de uma cidade qualquer no interior de algum lugar no canto desse mundo, pois a localização desse evento é um detalhe pouco importante para ela.
Ah... Como ela estava elegante, com um vestido preto e sua meia calça, da mesma cor, que para ela compõe um conjunto mais harmonioso ao usar suas novas botas coturno de salto.
No alto de sua cabeça um belo coque abacaxi, deixando alguns cachos soltos, dando leveza ao penteado.
Ela estava, com seus óculos escuros, sentada nas asas da estátua de um anjo, onde ela tinha visão privilegiada do enterro de um marido infiel, morto num suposto "acidente" de carro, envolvendo também o marido de sua amante.
A pobre esposa estava aos berros.
- OH SE NÃO EXISTISSE A MORTE SERIA DIFERENTE... AH MORTE MALDITA
- Oh Querida obrigada! - ela fez um pequeno aceno de cabeça, como se a mulher pudesse vê-la!
Ouvindo tudo com certa frieza ela até se divertia, pelo costume de ouvir seu nome atribuído a tudo de ruim, lidava com situações assim com desprezo, ou pelo menos fingia não ligar.
- Ah, onde estão as comentaristas de plantão? - ela procurava dentre os presentes o grupo que sempre cochichavam sobre tudo, inclusive sobre ela! - Ali estão... Víboras - seu olhar de desprezo as encontrou. Três mulheres no canto fazendo o que já era esperado, cochichando.
Falavam da viúva e seus chifres e de como sabiam desde o início da traição e nada falaram. E claro não podiam deixar de falar do quanto a Morte é brutal, terrível, sem compaixão, fria e o quanto a temem.
E a cada palavra ela revirava seus olhos.
- Ordinárias. - Cruzou seus braços - São tão previsíveis, nunca trocam o disco!
Há séculos ouvindo o quão cruel era, ela criou uma casca, por fora fingia não ligar mas por dentro sentia um turbilhão de emoções, queria ser inabalável mas já estava cansada de ser temida e odiada.
- Esse sofrimento é culpa da morte. - Gritava a viúva.
De todas as terríveis atribuições a seu respeito, culpada era de longe sua favorita, ao contrário, Morte jamais entendeu o motivo de a culparem pelas escolhas que as pessoas faziam, ou simplesmente por fazer aquilo pelo qual ela foi criada.
Presa nesses sentimentos ela mantinha os olhos, por trás das lentes escuras, fixos na viúva, que estava para começar o maior espetáculo dramático que todos os presentes podiam imaginar.
A mulher mediana, já desgrenhada por causa de sua histérica tristeza, agora se aproximava do falecido e se debruçava, levantava e debruçava de novo a cada grito que dava, sem perceber que toda vez que repetia esse padrão o suporte que segurava o caixão cedia, até que não aguentou o peso e quebrou.
O caixão, ainda aberto, caiu na cova levando a viúva junto, que agora chegava ao ápice de seu drama.
- SOCORRO, EU NÃO QUERO MORRER, NÃO! ME TIRA DAQUI POR TUDO DE MAIS SAGRADO!
A Morte ao assistir tal cena caiu na gargalhada. Mas antes que pudesse ver a pobre viúva sendo retirada do buraco, seu relógio disparou o alarme discreto, sinalizando que era hora de acompanhar outra travessia.
Em seu dispositivo TecDest* ela podia ver a localização da próxima alma.
Unidade neonatal do Hospital San Juan de Dios, na Costa Rica.
- Droga na melhor parte. - Descruzou as pernas e num piscar de olhos não estava mais sobre as asas da estátua.
Estando agora em solo Costa Riquenho, ela aproveitou para checar com mais calma todas as informações da Alma em questão
*Tecnologia dos destinos = igual a um smartphone
•Nome: (não registrado) chamado pelos pais por Thomáz
•Idade: 3 días de existência
•Situação: Primeiro filho de seus pais.
Ingeriu líquido durante seu parto que provocou uma infecção intestinal resultando a necessidade de cirurgia.
•Hora da travessia: 17:30
•Motivo em laudo humano: não resiste às complicações durante cirurgia.
•Motivo do destino: A alma a realizar a travessia, não necessita de experiências terrenas, devido a seu histórico de perfeição na pré-existência precisa apenas de um corpo para um dia ressurgir na manhã dos justos.
Ao ler as informações, como de costume, notou que faltavam 30 minutos até a travessia começar.
Ela observou os médicos aflitos, porém muito atentos.
Buscou em seu TecDest se ela havia disponibilizado opções extra, mas devido ao histórico perfeito do Pré-Vida da alma, não tinha chance de a Morte apelar por uma dádiva do Infinito.
- Droga. Detesto levar almas jovens... - bufou.
Ela decidiu ver os pais do pequeno Thomáz, por impulso ou talvez, não que ela admita, por empatia.
Ela os encontrou na sala de espera, ao ver os dois sentiu que sua garganta se fechava.
A jovem mãe, ainda fraca por seu parto recente, e seu marido e pai do bebê, estavam ajoelhados em uma silenciosa súplica.
Mesmo sem dizer uma palavra sequer, os dois emanavam tanta força e esperança que era possível sentir suas almas gritando por socorro.
Estavam de mãos dadas e testas coladas, a Morte sentiu que poderia ter compaixão da humanidade se continuasse os observando.
Mas decidiu que aquela família merecia um pouco de seu esforço para ser empática.
Saiu para pensar, vendo que ainda tinha 10 minutos decidiu dar uma volta próximo do hospital.
- Ah - grunhiu de raiva - Poderiam ser mais desprezíveis dessa vez... Não seria tão difícil.
Ela pensou em todas as outras pequenas almas que acompanhou pessoalmente a travessia e percebeu que é incapaz de não se sentir culpada. O pior sentimento. Ela desejou não ter de fazer aquilo.
- Sempre assim. - ela pisou em um latinha - Eu não quero levar o Thomáz assim como nunca quis ser culpada pela perfeição de todos os outros pequenos que se foram - gritou chutando a latinha para longe. - Só não quero me sentir assim, não de novo...
Um grito do outro lado da rua chamou atenção dela e percebeu que a latinha que ela chutou com tanta força voou até uma moça que estava do lado de uma rua com esquina para a avenida.
Claro que a jovem deve ter se assustado com uma latinha voar com tanta velocidade como se tivesse sido arremessada e do outro lado não ver ninguém, já que ela não podia ver a Morte, ainda.
Porém o que mais chamou sua atenção foi o cartaz que a moça carregava, que dizia:
"Estamos de greve"
Olhando ao redor ela encontrou um grupo grande e barulhento de umas 150 pessoas, que também levavam cartazes, faixas e megafones berrando e anunciando uma greve!
"Pela valorização de quem somos
Estamos de GREVE"
💡
- É isso... - Seus olhos brilharam.
Ela deu um passo à frente. Girou nos calcanhares feliz com a genialidade de seu plano!
- Eu serei amada! Serei heroína dessa vez! Há - ela parou e olhou para os protestantes - É...
Subiu no capô de um carro estacionado na rua, abriu os braços, respirou fundo e soltou o ar de seus pulmões em alto e bom som :
- EU ESTOU DE GREVE!
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O Que Aconteceu Com a Morte?
FantasyNesta história a Morte é a protagonista e ela está de greve! Venha descobrir o que aconteceu com a Morte! Fique comigo e acompanhe essa aventura! (O livro físico será lançado em breve!)