Desafio

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Chico saiu da praça, uma vez descoberto, seria perigoso demais ficar por ali. Ele correu saltitante para sua casa, até desistiu de visitar o pai do amigo. Precisava abrir o papel da inscrição e conferir que tudo não passava apenas de um sonho ou uma pegadinha.

Ao chegar em casa, imediatamente sua família o rodeou. Seu pai, sua mãe e suas duas irmãs. Em uníssono eles esbravejaram com o gato. Pobre Chico, não teve nem o momento de comemorar sua conquista com a família. Enquanto eles estavam à sua volta gesticulando, ele olhava fixo para o quadro na parede da sala. Era a foto de seu bisavô, Francisco. Dali veio seu nome Francisco Neto. Mas todos o chamavam pelo apelido: Chico.

Seu pai percebeu que ele olhava fixo para o retrato, fez um gesto para que todos se acalmassem, se posicionou na frente do filho, colocou suas patas no ombro dele, e disse olhando no fundo de seus olhos amarelos:

— Filho, seu bisavô morreu iludido em uma vitória que nunca aconteceu. Olha a nossa situação...Você não vê? Sonhadores não têm espaço nesse mundo. Gatos sonhadores viram ração nas fábricas.

— Ou pior — Falou sua mãe por detrás dele — São servidos em filé para os cães de pedigree. Você quer virar filé, Chico?

Chico vacilou em olhar para os olhos verdes de seu pai, e para o quadro na parede. O gato persa, com roupa de guerrilha, havia falecido há anos, lutando na revolução que fez os felinos perderem seu último pedaço de território.

— Eu acho que prefiro morrer tentando, pai — Chico colocou a pata no ombro branco de seu pai — Pelo menos eu devo dar um ótimo filé — falou abrindo um sorriso e sua mãe caiu em desespero.

Já no quarto, ele acabou não dormindo. Enquanto toda a casa estava em silêncio, pois toda a sua família era privilegiada de trabalhar em turnos noturnos. Respeitando os horários naturais dos gatos.

Dentro de sua cama, uma caixa de papelão, Chico abriu o papel da inscrição. Não era uma enganação. O seu nome estava no papel oficial da rádio, não tinha volta. No verso tinha a instrução para o primeiro desafio da competição.

Ele leu com atenção, surpreso colocou o papel em seu colo, fechou os olhos e leu novamente. Para o primeiro desafio o competidor teria de mostrar que sabia escrever uma boa história, o competidor precisaria apresentar uma história lida por, no mínimo, mil animais. Não especificava as espécies.

Chico olhou para o seu caderno em pedaços ao seu lado, sua pupila dilatada pelo escuro do quarto e pela excitação. Ele tinha consciência de como aquilo poderia ser difícil, mas naquela manhã, vendo seu colega Guto, precisar entrar novamente naquela fábrica, todas as probabilidades estavam contra ele. Mas encontrar essa brecha, era um verdadeiro milagre, e ele estava disposto a agarrar essa chance com todas as forças.

No dia seguinte, assim que chegou na fábrica, ele foi abordado pelos outros gatos que também o ouviram pela rádio. Choveu perguntas sobre como ele sabia o que iria acontecer, se ele foi pago para fingir participar, só para a rádio sair como benfeitora dos gatos, mas Chico quase não conseguiu respondê-los.

— Eu preciso de ajuda! — Ele subiu em uma mesa do refeitório, onde todos se reuniam nos seus vinte minutos de pausa — Preciso que vocês leiam a minha história — Ele levantou seu velho caderno no ar.

— De novo isso! — Disse Oliver abaixo dele.

— Não! — Chico tentou se explicar — Dessa vez é diferente. Sabe o que essa minha participação pode significar? — Ele olhou para seus colegas felinos, mas todos ficaram em silêncio comendo suas porções de rações — Algo impossível aconteceu, mas pode ser o início para os gatos terem mais oportunidades! — Após dizer isso, todos os gatos gargalharam. Muito. — Me escutem! — Ele continuou — Eu só preciso que mil animais leiam a minha história para passar de fase na competição. Só aqui na fábrica somos mais de 400 gatos, se vocês apresentarem para suas famílias, será perfeito!

— Você quer que a gente leve esse seu caderno para casa, e leia com a família ? — Um velho gato cinza, sem pelos, resmunga no fundo do salão.

Chico parou por uns instantes. Ele não havia pensado nisso. Teria apenas duas semanas para apresentar essa tarefa do desafio. Mas emprestar seu único manuscrito era inviável. Poderiam levar meses para que mil pessoas o lessem. Fora o risco de perderem o caderno.

O alarme da fábrica toca.

— Hora de acordar, amigo — Oliver tocou na pata traseira de Chico que estava em pé em cima da mesa — Vamos trabalhar, os guardas já estão olhando pra gente de cara feia.

Chico voltou ao trabalho. Trabalhou com o mesmo movimento repetitivo de rotular as latas de ração, enquanto pensava. O que poderia fazer para que mil animais lessem a sua história ?

CHICO - O gato escritorOnde histórias criam vida. Descubra agora