Existência incerta

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“Quando os medos são inevitáveis e não há para onde correr, não chore, nem fuja... pois é apenas sua alma buscando a redenção.”

 1. 

No relógio de cabeceira, duas e meia da manhã. O pequeno quarto, era banhado pela luz alaranjada da cidade, pintando as paredes, móveis, incontáveis pôsteres na parede, roupas espalhadas pelo chão. O som de um carro acelerando na rua que parecia estar tão distante fez com que uma garota, que estava sentada de cabeça baixa, misturando-se com as roupas no chão, erguesse o olhar, banhado de lágrimas para o céu escuro que se desdobrava infinitamente sobre sua janela. Seus braços sangravam como nunca, mas mesmo assim, ela se permitiu a luxúria de deslizar a lâmina em seu braço mais uma vez. A luxúria da dor. Refúgio. Thereza.

Enquanto o sangue escorria, misturando-se as outras linhas vermelhas em seu braço, a dor, aos poucos, entorpecia sua mente. Fazia com que ela deixasse de lado, por um instante, aquela velha melancolia e passasse a se concentrar na dor. Apenas na dor. Sem medo, sem ódio, sem revolta, sem incompreensão. A lâmina de barbear, firme entre seus dedos magros deslizam suavemente, e ela fecha os olhos. Dor. Quando, por descuido dela, as “amigas” da sua sala viam alguma marca, achavam um absurdo. Não entenderam, nunca entenderão. Aquela sensação de que o absurdo dentro de sua cabeça poderia ser silenciado, mesmo que por poucos segundos, mesmo que apenas pelo tempo em que a dor subia ao palco central de sua mente, era muito gratificante. Era assim que os felizes deveriam se sentir o tempo inteiro, ela pensou. Sem loucuras, sem precisar da dor. Ninguém nunca a entendeu.

A lâmina fez seu caminho final, e ela observou quanto sangue se esvaía em direção aos cotovelos. Esse era um dos grandes. Será difícil de esconder amanhã. Haveria um amanhã?

Ela sente o calor do sangue em sua pele, enquanto se levanta. Caminha alguns passos e chega até um espelho, para o corpo inteiro, um presente que ela detestava. O espelho estava ligeiramente inclinado para o lado, como se fosse para quem passasse por ele não conseguisse visualizar seu próprio reflexo. Ela puxa o espelho que gira sobre a base, e permite com que a garota possa ver seu corpo completamente. Ela queria ver a própria ruína de perto. Queria ver no que tinha se tornado. Estúpida e ingênua.

O reflexo opaco traz a tona um corpo excessivamente magro e pequeno. Vestindo apenas uma mini blusa e uma calcinha preta, ela parecia uma criança, com seus apenas um metro e cinqüenta e seis de altura. Seu rosto sulcado, seria considerado meigo, se aquelas olheiras tão profundas, e as bochechas tão úmidas de lágrimas que não marcassem seu rosto, como cicatrizes, sobre os olhos castanhos. Seu cabelo cacheado, espalhava-se sobre sua cabeça, aleatoriamente, bagunçados. O castanho dos fios parecia morto. Seus seios estavam arrebitados, segundo sua mãe, coisa de adolescente. Assim como nas poucas vezes em que abriu as comportas de suas loucuras para sua mãe, e foi obrigada a ouvir. “Thereza, essa fase passa. Todo mundo passa por isso. A vida e muito menos as pessoas nem sempre são o que se espera delas.” A garota olha para o nada que via refletido no espelho, desejando que o sangue que pingava sobre o piso escorresse até matá-la. Thereza. Nome de velha intitulado um corpo magricela de dezesseis anos. Ela era aquilo? Apenas um corpo?

Não agüentando mais encarar os próprios olhos, ela decide sair. Sabe quando tudo o que se quer é vagar pela noite? Sensação parecida com a que experimentava na dor. Enquanto se anda por aí, os pensamentos fluem junto com a corrente sanguínea. Nascem e renascem, crescem e se multiplicam. O ar de fora parece ser um convite a criatividade. Talvez aquele velho refúgio... Sim, talvez ele  trouxesse conforto. Seus pés descalços percorrem o quarto, enquanto ela se enfia em uma calça jeans surrada e calça seu velho All Star de cadarços encardidos. Dá algumas voltas em seu braço com um pano simples, usado para cobrir ferimentos. Sem lembra da primeira vez em que Adriana viu seu braço enfaixado, sua expressão de horror, e logo após, de compreensão. Adriana, talvez a única que visse apenas uma sombra do que ela poderia ser de verdade, por dentro. Mas até mesmo ela parecia distante agora. A “rainha da solidão”, apelido que ela adorava, dado por Adriana, estava mais uma vez ficando só como sempre foi. Seria esse o estopim da auto-destruição?

Mesmo sobre aquele calor, a blusa me moletom preta com o capuz era essencial. Assim, poderia vagar livremente, sendo confundida com alguma drogada da noite. Após jogar os cabelos para dentro do capuz, ela deu seu último olhar para o espaço bagunçado e para os pôsteres de bandas de rock sobre a parede. Em seguida, apoiou-se sobre a janela, desceu e pulou o portão pequeno de sua casa, em direção a noite.

As ruas tinham a assinatura do silêncio da madrugada por todos os cantos. Um ou dois carros passavam, enquanto ela caminhava. Fora isso, apenas mendigos dormiam pelos cantos e grilos cantavam pelos matos. Ela fecha os olhos e mete as mãos nos bolsos. Por que de dia não poderia ser assim? Sem todos aqueles malditos transitando por todos os lados. Apenas o silêncio e a luz fraca de uma lua tímida perpetuavam sobre a noite. Ela passou a odiar as pessoas. Passou a odiar a hipocrisia que todos vivam, o tempo inteiro, fingindo ser real. A vida era tão mais que aquilo, ela sentia. Mas não entendiam. Adriana aconselhava a não pensar nisso, a não discutir. Logo em seguida, começava a falar sobre ela mesma de novo. Porra, Adriana era tão diferente! Por que só tinha olhos para os próprios problemas? Ela não era como a vaca da Patty ou da Rafaela, estúpidas que só queriam sair com qualquer cara que “elevasse” seu “status” entre as outras. Lixos. Azia. A náusea invadiu seu estômago, enquanto ela aos poucos diminuía o passo. Seu refúgio estava bem perto agora.

As paredes ficaram uniformes, brancas. Um muro se estendia pela frente, e entre esse muro havia uma lacuna, que sustentava um portão de grades simples. Estava semi-aberto. Claro, ninguém seria louco de entrar ali a noite, era o que os “normais” pensavam. Mas Thereza poderia ser qualquer coisa, menos uma normal. Pela primeira vez em dias,  o que poderia ser o esboço de um sorriso cobre seu rosto. Ela segue pela abertura do portão, enquanto o vento da noite misturado com o cheiro da morte sopram madrugada adentro.

A  última morada dos mortais. No recinto completamente escuro, Thereza apenas vê o balanço das árvores quase sobrenaturais e o caminho que se estende a sua frente, ao lado dos incontáveis túmulos formando um espécie de “rua”. Silêncio absoluto. Não era isso que ela tanto queria? Paz. As pessoas que moravam naquelas ruas não a incomodariam. Seriam suas amigas silenciosas. Ela segue a passos curtos, andando devagar e admirando a escuridão e a paz do lugar. A vontade de sugar aquela paz para dentro de si mesma é inevitável.  Valeria a pena mergulhar na escuridão da incerteza do além?

O pequeno vulto encapuzado segue em direção a um luxuoso túmulo, com uma estrutura de dois andares. Ela olha para o anjo entalhado em pedra sobre o túmulo. Sua expressão é triste, e seu olhar é voltado para baixo. Suas asas estão ligeiramente gastas, e uma parte de seu manto está rachada. Thereza murmura baixinho:

-Oi “olhos cinzentos”. –em seguida encosta sua mão sobre um de seus braços. Pedra nobre e forte.

As muitas vezes que a trouxeram naquele túmulo fizeram com que se apegasse aquela estátua de anjo. Ela sentia um carinho por ela. Já tinha chorado incontáveis vezes ao lado dele. O apelidou de olhos cinzentos. Um amigo, uma estátua.

Sentada na base de cima do túmulo, a garota tinha uma bela vista da cidade, e do resto do cemitério. Daquele ponto, o amontoado de casas apenas parecia um grande mar de pequenas luzes. Pequenas, tão pequenas. Não pareciam abrigar a cabeça de tanta gente egoísta. Egoísmo. Seria ela mesma uma grande egoísta? Mesmo depois de passar tantas horas ouvindo os problemas de Adriana sem nem ao menos dizer nada? Seria ela tão egoísta assim por não aceitar ser como as estúpidas da sua sala? Ou seria ela apenas uma fraca por ouvir o que as pessoas tinham a dizer sem nem ter coragem de mostrar o demônio interno que a atormentava? Ironicamente, se passou pela sua cabeça se ela realmente soltasse seu verdadeiro demônio em cima dos problemas as outras pessoas, ele engoliria eles completamente. Se eles soubessem...

Aos poucos, seu olhar se perdeu no horizonte cheio de túmulos. A cidade e seu manto de luzes. Então, de repente, um ponto branco surgiu em um dos corredores dos túmulos. Thereza apertou os olhos. O ponto parecia se mover. Seria um drogado? Se fosse era melhor ela sair dali bem rápido. Não... Muito pequeno para ser um drogado. Mais perto... pequeno. Uma criança? Poderia ser. Talvez uma ilusão? Não, esta noite ela não tinha bebido nada. Mais perto... o ponto branco caminhava calmamente, e parecia vir em sua direção. Cabelos longos ao vento, vestido branco. Uma menina? Puta que pariu, o que o menina estava fazendo naquele lugar? Só se fosse....

Thereza pulou de cima do túmulo imediatamente. Ela acreditava em fantasmas, porém, nunca havia se imaginado perto de um. Medo. Suas pernas fraquejaram enquanto observava a garota, agora um vulto facilmente identificável. Estava com alguma coisa nas mãos. Que porra era aquela? Pensou em correr. Mas era só uma criança. Não poderia fazer mal. Ou poderia? 

A Redenção de TherezaOnde histórias criam vida. Descubra agora