2 - Pelo amor de Deus

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Este capítulo contém transfobia e violência.


— Depois diz que eu atraso, aquela pinscher desalmada.

Lá estava eu, na porta da balada, esperando uma tal de Linda Johanssen chegar com o carro. Naquele instante, um Uber não parecia a pior escolha.

Percebi que havia um senhor de idade mexendo em um celular, com a tela bem perto do rosto, e apertando com força alguma coisa. 

Eram duas da manhã, a rua não estava muito deserta. Haviam dois casais se pegando atrás de um Fiesta, há uns dez metros de mim, praticamente se engolindo. As duas meninas loiras puxavam o cabelo da outra com tamanha força que a cola da peruca pedia arrego, além de gostarem muito de morder o lábio uma da outra. O casal hétero era mais tranquilo, exceto pelo fato de que quando se viraram um pouco para a direita, observei uma arma na cintura do homem. Bem, virei o rosto.

O senhorzinho ainda estava sofrendo com o celular, quando decidi me aproximar. 

Ele deveria ter uns 70 anos. Vestia blusa cáqui e calça jeans folgada, além de um par de sapatos amarelos. O olhar cansado do homem tentava chamar um táxi.

— Com licença — falei. Ele não percebeu minha presença. — Licença — falei um pouco mais alto, o que fez ele se virar. O senhorzinho recuou um pouco, talvez assustado.

— Sai! Não tenho dinheiro! — ele gritou bem alto. O grupo de beijoqueiros se virou para mim.
— Não, não é isso — tentei dizer muito tranquila — só quero ajudar o senhor.

Mas o homem idoso não entendeu o que eu disse. Ele puxou algo da bolsa, uma maçã, e arremessou em minha direção.

— Pronto, é só isso que eu tenho! Vai embora! — gritou ele. A maçã me atingiu no braço. 

Uma das meninas loiras, segurando uma bolsa com correntes douradas nos cantos, andou alguns metros e gritou: 

— Ô, seu tarado, não tem mais o que fazer não?

Eu me assustei na hora, não esperava o xingamento. Ela era alta, e usava brincos de pena. O que me chamou mais atenção foram os sapatos vermelhos.

— Não, não é isso...
— Ladroa! Ladroa! É ladroa! — o senhorzinho gritou desesperado.

O único homem do grupo do Fiesta, que já havia parado de beijar há algum tempo, se aproximou de mim. Ele tinha estatura baixa, cabelos pretos e pernas voluptuosas. O garoto andou rápido e falou:

— Tá fazendo o quê, sua prostituta? — ele na verdade falou um nome bem pior — gastou tudo do serviço aí dentro é? 

Eu não sabia o que fazer. As duas meninas loiras se juntaram o cara armado, enquanto a outra menina ficou olhando tudo atrás do carro.

— Não, vocês entenderam tudo errado. Pelo amor de Deus, eu só queria ajudar o....
— Ajudar o caralho, seu traveco de merda — disse a menina loira que chegou primeiro, com uma cara de "vou te matar".

Recuei imediatamente. Pensei em correr, mas qualquer rota de fuga estava bloqueada por um deles. Senti meu coração bater o mais rápido possível (aceleradíssimo). Eu gritei "por favor gente, é só um engano, vamos conversar", mas a resposta deles veio em seguida. Caí de bunda depois de uma rasteira, e acabei aceitando tudo aquilo. Chorando muito, enquanto tudo doía, coloquei minhas mãos no rosto e me imaginei num clichê de filme dos EUA, enquanto eles me chamavam dos piores nomes possíveis. Até uma bolsa voava em minha direção, pude ouvir o chacoalhar das correntes dela.

Não funcionou. Senti um líquido sair por minha boca, que não consegui ver de qual cor era, mas no fundo sabia que era vermelho. Minha pele parecia que ia virar do avesso. Doía demais, mas eles só pararam quando perceberam que eu havia desmaiado.

Antes disso, a última coisa que me lembro é de abrir os olhos e ver, atrás do carro, uma menina chorando, gritando para eles pararem. 


[...]


A primeira coisa que senti foi o cheiro de canela, com um toque de menta. Talvez vinha da cafeteria.

As paredes tinham cor azul-piscina. Haviam duas lâmpadas tubulares no teto, e vários mosquitos ao redor. Meu corpo inteiro doía, mas minha barriga era a pior parte. Era como se tivessem enfiado uma agulha gigante lá dentro, e agora ela tentava sair.

Percebi também que o travesseiro não era nada confortável, e o lençol tinha o nome VIDAL,  em azul. E que no lado direito, com a cabeça apoiada na própria mão, dormia uma menina de cabelo longo, pele parda, e olhos verdes.

— Linda — chamei baixinho. Não queria realmente acordar ela, mas precisava saber se estava tudo bem.

Ela abriu os olhos, deu um sorriso leve, e uma lágrima escorreu do olho direito.

— Porra Claire — ela caiu aos prantos, chorando igual um gatinho que perdeu a família. — Desculpa, por favor, me desculpa, eu devia ter ido mais rápido, eu...
— Ei — interrompi ela — Tá tudo bem. A culpa foi deles, não sua.
— Claire...
— Só me diz o que houve comigo, por favor — implorei.

Ela se ajeitou na cadeira, enxugou o rosto, e começou:

— Eu cheguei lá, você estava no chão, toda — Linda assoou o nariz com a mão — melada de sangue, a sua perna esquerda ficou... 

Ela fez um gesto com as duas mãos, invertendo o lado delas. "Ao contrário", era o que ela queria dizer.

— O médico disse que você fez bem protegendo o rosto, mas que suas duas costelas... quebraram.

Era por isso a dor excruciante na barriga.

— E agora? — perguntei.
— Eles disseram que vão vir uns policiais pra que você, se quiser, registre o ocorrido.
— Minha perna...

A perna estava completamente engessada, sem possibilidade de movimento. Meu pé também estava com gesso, mas eu conseguia mexer os dedões.

— E por causa disso — Ela apontou para meu pé esquerdo — ele tem esperança que você consiga movimentar a perna inteira logo logo. Mas caramba Claire, que filhos da...
— Relaxa. Não foi a primeira vez que me bateram. Nunca tão forte, mas já tive doses de transfobia durante minha vida toda.
— Tá. Você merece descansar. Eu vou na cafeteria comprar alguma coisa, não como a algum tempo — falou Linda.
— Ok. Me trás algo de canela com menta.
— Pode deixar.

Ela me deu um beijo na testa, pegou a bolsa, e saiu pela porta.




Claire só tem medo de borboletaOnde histórias criam vida. Descubra agora