Capítulo 3

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   Acordei com o barulho da chuva forte que batia contra as portas, eu estava sentada no chão da sala, lá fora o mundo estava caindo, as árvores quase eram arrancadas do chão pelo vento, e a cada minuto um raio acompanhado por um trovão dava luzes ao céu.

—Sabia que acordaria quando os ouvisse. —Aquela mesma voz soou ao meu lado, me fazendo repassar todos os acontecimentos antes de eu ter apagado.

—Quem é você? —Pergunto em um sobressalto.

—Assim não S/A... Você costumava ser mais doce. —Adverte em desaprovação.

—Você matou ela!

    Eu sentia o luto me corroer ainda mais forte agora, eu nunca mais voltaria a vê-la, a abraçá-la, a ouvi-la cantar. Não tinha mais ninguém. Estava sozinha.

—E me deixa adivinhar... Ela era a única que te restou.

—O que você quer?! —Deixei que todo o ódio que estava sentindo encharcasse minhas palavras com ácido.

—Ah... Agora estamos chegando a algum lugar. —Diz parecendo animado. —Veja bem, eu te conheço há anos e você nunca pensou em me perguntar isso.

—Me... Conhece? —Pergunto assustada.

—Ah... Sim, passei incontáveis noites do seu lado. Talvez... Alguns dos seus pesadelos tenham sido culpa minha. —Diz baixo. —Não era a minha intenção. Mas acontece que... Você era a única que me sentia. E continua sendo a única.

—O que...

—Eu vou tentar contar tudo. —Começa me interrompendo. —Há alguns séculos, não havia nada aqui, apenas a floresta. Essa era uma floresta considerada proibida, por ninguém nunca conseguir descobrir o que tinha aqui e sair vivo para acabar com a dúvida. Muitos homens que se julgavam corajosos cruzavam as árvores e a neblina para tentar provar o quanto eram valentes. Mas nenhum deles nunca voltou. Um deles, era meu pai... A minha mãe suplicou por milhares de vezes pra que ele desistisse daquela ideia tola, mas não adiantou e ele veio mesmo assim... Eu tentei vir atrás dele, pensei que assim o faria mudar de ideia mas não foi assim que aconteceu. Eu ainda consigo me lembrar exatamente como foi e tudo que senti. Assim que demos o primeiro passo dentro da floresta foi como se algo se fechasse por trás de nós, como se houvesse um portal entre a floresta e o resto do mundo... Entre o inferno e a terra. Ouvíamos risadas vindas de todos os lados, a neblina se condensava e eu jurava que podia cortá-la se quisesse. Uma sensação estranha me tomou, eu não sabia dizer se era pânico, ou arrependimento... Só tinha a certeza de que o que estava aqui não era algo bom, ouvi passos nos rondando, meu pai segurou a minha mão dizendo que iríamos sair dali, prometendo que não nos deixaria jamais... Sua garganta foi cortada em segundos e eu nem consegui ver pelo que... Mas não demorei para estar desejando que nunca tivesse visto. Mesmo com o passar de tantos anos eu ainda não sei descrever que criatura era aquela... Seus olhos totalmente negros, totalmente desalmados, seus dentes sujos e ensanguentados, ainda não sei dizer se era algo peludo ou se vestia uma pele de algum animal negro... Eu não sabia o que iria acontecer comigo, mas não conseguia impedir seja lá o que fosse acontecer, estava paralisado, preso ao meu pânico aterrador. E então senti uma dor imensa, eu devia ter morrido... Mas não parecia estar, não ainda. Eu conseguia ver o meu corpo caído ao lado do corpo do meu pai, a criatura me olhava parecendo furiosa e eu não conseguia entender absolutamente nada do que aconteceu ali. Por dias tentei me acordar tentando me convencer de que tudo aquilo era só um pesadelo, mas um dia eu aceitei que eu não acordaria na minha cama com a respiração descompassada, ouvindo a doce voz da minha mãe tentando me acalmar dizendo ser só um pesadelo e que ela estava ali. Nunca aconteceu. A criatura nunca mais apareceu pra mim, mas eu ainda sinto que está aqui. Por alguma razão, a sua família conseguiu entrar nessa floresta sem sentir nada estranho, a criatura não fazia mal a vocês, e eu não entendia o por quê assim como não entendia o olhar furioso que ela tinha em mim. Até que um dia sua avó estava contando algumas histórias e eu entendi tudo...
"Nossa família foi criada pela luz... E nada pode apagar essa luz" ela dizia sorrindo. Alguns de vocês pensavam que era apenas uma frase fofa dela, mas aquilo é a verdade. A criatura não consegue estar no mesmo lugar que vocês, por isso a floresta é um lugar totalmente diferente com vocês aqui... Ela tem vida, ela abriga vida... Quando não estão, a única coisa que ela abriga é a criatura e as almas que ela aprisiona aqui... Como a minha. Descobri que não estou morto e nem mesmo vivo... Talvez por isso a criatura me odeie. Alguns de vocês dizem que espíritos malignos habitam corpos entre a vida e a morte, mas algo impediu que ela habitasse o meu. Desde que chegaram eu tento pedir ajuda, desde seus tataravós, mas ninguém nunca me sentiu aqui... Até que você chegou. A primeira vez que esteve aqui estava com seus lindos e inocentes quatro anos, eu sentia que você me via, você foi e é, a minha primeira e única esperança.

—O que quer que eu faça? —Pergunto esperando que toda essa loucura acabasse logo.

—Eu não sei... Ainda não entendo. Mas talvez pela sua luz, eu me sinta em paz com você. Por outro lado, mesmo que a criatura tenha tentado tomar meu corpo de algum jeito, ela conseguiu uma parte. Eu sou a razão dos seus pesadelos. Eu não...—Sua voz falhou. —Eu não quis matar... A sua tia. Sinto muito. Nem te machucar. Eu juro que tento controlar, mas algumas vezes são piores que outras.

   Eu não conseguia imaginar como podia ser isso. Eu perdi todos que eu amava, mas isso... Era sofrimento demais. Viver por tanto tempo preso, não poder se sentir amado por ninguém, ignorado por todos, condenado a pior das torturas.

—Qual é o seu nome? —Digo tentando segurar o choro que prendia naquele mesmo nó que permanecia na minha garganta.

—Lee Yongbok.

—Eu... Queria saber como ajudar. —Digo abraçando meus joelhos. —Eu quero saber como ajudar. 

   Algumas lágrimas desceram mesmo que eu tentasse as controlar, eu entendia que tinha sido muito para apenas um dia. Eu nunca vou conseguir dormir sem me lembrar... De certa forma, eu e o Yongbok não éramos tão diferentes, nós dois vivíamos uma tortura que parecia eterna.

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