XIX

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AGORA EU PERCEBO QUE... Somos mais do que amigas ou família, também éramos companheiras uma da outra. Não importa o quão difícil seja essa batalha, desde que estejamos juntas, vai ficar tudo bem. Camilla está preparada para enfrentar a doença de frente, estamos ambas confiantes de que ela vai melhorar.

Eu venho pesquisando formas, desde alimentos à exercícios que podem ajudar na recuperação. Eu estou do lado dela até mesmo quando ela faz esteira, coisa que precisamos comprar.

- Vamos comer - eu levei o prato até ela. - Óleo de coco é bom para você.

E eu realmente havia pesquisado isso. Um estudo verificou possíveis efeitos benéficos após intervenção com óleo de coco em pacientes com Alzheimer. De acordo com os pesquisadores, foram observadas melhorias na memória episódica, temporal e na memória semântica. Então sempre que dava, eu colocava óleo de coco para ela.

Jogávamos o jogo da memória, às vezes ela se perdia, mas eu a incentivava sempre a se recordar onde estava o par certo. E ela conseguia. No entanto, ela se esquecia de outras coisas, como por exemplo, eu havia acabado de tomar banho e ia escovar meus dentes, Camilla havia comprado mais de vinte pastas de dente, tudo por que se esqueceu que já havia comprado. Não era algo fácil de processar, eu via cenas como estas e ficava com aquele aperto no coração e uma vontade de chorar até tudo passar.

Mas, eu precisava ser forte.

A memória de Camilla está se deteriorando mais rápido do que esperado. As anotações de seu diário estão cada vez mais desarticuladas e confusas. Ela até se esquece de como realizar muitas funções básicas do dia-a-dia. Eu preciso observá-la e lembrá-la constantemente. Por isso, nossa casa está cheia de post-its com instruções do que fazer. Como ligar o micro-ondas, onde estão os talheres ou os copos, coisas simples, mas que apavoram.

Fizemos um quadro com fotografias de todos os familiares e amigos, inclusive com nossas fotos para que ela não se esquecesse quem é quem.

- Você escovou os seus dentes? - eu perguntei.

- O que você acha? - ela deu um sorriso fraco.

- Abra a sua boca, deixe eu ver - e fiz um som de A, ela repetiu abrindo. Eu cheirei. - Uau está bem refrescante e limpo. - Eu dei um sorriso orgulhoso. - O almoço está pronto ali, apenas aqueça, ok? Eu tenho que ir.

- Quando você estará de volta? - ela perguntou hesitante.

- Olhe aqui no relógio - eu ergui meu pulso. - Quando o ponteiro curto se mover para "6", "6" e eu estarei de volta.

- Você não estará de volta até as 18hrs - ela sussurrou.

Eu confirmei triste.

Eu precisava trabalhar enquanto ela ainda não estava em um estado agravado, eu odiava isso, mas era preciso.

Uma manhã eu acordei e não encontrei Camilla ao meu lado, entrei em desespero pulando da cama. Onde ela estava? Eu caminhei para o banheiro e nada, então desci as escadas e encontrei ela calçando saltos e se preparando para sair.

- Onde você está indo? - eu perguntei um pouco ofegante.

- Eu tenho uma reunião hoje. Eu não estarei em casa para o jantar.

Eu olhei para o vazio alguns segundos, engolindo em seco.

- Trabalho duro.

E ela saiu.

Eu peguei minha chave e carteira e a segui.

Ela foi até o shopping, eu a observava de longe. Ela olhava algumas joias, quando olhou para trás, eu me virei rapidamente tentando disfarçar, mas quando voltei a olhar para ela, Camilla havia sumido.

Eu corri até onde ela estava segundos atrás e fiquei girando tentando achá-la e nada. Corri para as escadas rolantes e tentei avistar ela em uma delas, mas não havia sinais dela. Droga! Eu era muito idiota em ter deixado ela fazer algo assim. Achei que isso poderia ajudá-la de alguma forma e agora eu a perdi de vista.

Fui na praça de alimentação, em lojas que ela costumava visitar e nada.

O desespero bateu forte em meu peito e liguei para Ally para avisá-la. Ela tentou me acalmar, mas sem sucesso, ela ligaria caso a encontrasse.

Eu decidi sair do shopping e caçá-la nas ruas, o céu já estava escurecendo e lágrimas caiam de meu rosto sem eu conseguir controlá-las.

Já passavam das sete horas quando Ally me ligou perguntando por notícias.

- Ainda não consegui encontrá-la, vou para casa buscar o carro. Eu ligo para você se houver alguma notícia. Tchau.

Ally também procurava ela.

Mas, eu sabia que era um tiro no escuro.

E se algo tivesse acontecido com Camilla? E se ela se perdesse e não se lembrasse o caminho de casa? Como eu pude perdê-la de vista? Como? Se algo... Se algo acontecesse com ela... Eu nunca iria me perdoar.

Eu cheguei em casa, minha cabeça já doía e assim que abri a porta eu vi Camilla fechando a geladeira e me olhando.

- Você está em casa - ela disse e eu fechei a porta. - Tão tarde. Você teve um dia agitado?

Eu corri e a abracei.

Ela retribuiu um pouco surpresa.

O alívio estava se instalando em meu peito.

- Ah, Camilla e como foi agitado.

Eu a beijei e ela deu um risinho.

- Venha - ela puxou minha mão e levou até a sala, onde um embrulho quadrado estava sob a mesa. - Sente-se. - Eu me sentei e ela abriu o embrulho, era um bolo branco com pérolas comestíveis, com as palavras "Happy Anniversary" (Feliz Aniversário) em rosa. - Feliz aniversário de casamento, é recheio de cheesecake, seu favorito. - Ela empurrou outro embrulho, menor para mim. - Aqui está o seu presente. - Eu a olhei. - Abra. - Eu abri, era um celular de um modelo antigo. - É o Nokia 5300, você sempre quis ter um. É difícil de conseguir. Você gostou?

Como eu poderia falar para ela que não era o nosso aniversário?

Eu não conseguia.

E então eu desabei, chorei tudo o que estava preso nos últimos dias.

Por quê a vida fez isso conosco? Por qual razão não podemos ter nossa vida em paz? Eu não aguentava ver Camilla nesse estado, se esquecendo de tudo, precisando da ajuda como se fosse uma criança, se perdendo até mesmo nos anos. Era como se ela tivesse se perdendo e eu também.

- Me desculpe... - ela sussurrou. - Eu me esqueci que já estamos divorciadas. Eu sinto muito... Eu vou... Eu vou guardar isso...

Eu não consegui nem me mexer, enquanto ela levava o bolo.

Só me entreguei a dor, liberando todo aquele choro que me cortava por dentro como se fossem mil facas. Eu não conseguia entender. Eu não queria entender. Como eu poderia me manter forte se eu não sabia lidar com situações assim? Eu estava partida ao meio, como eu poderia me recompor e ajudá-la nesse momento?

Como eu poderia ver o amor da minha vida desaparecendo?

Eu não sabia responder nada, então eu apenas desabei mais.

The Stolen YearsOnde histórias criam vida. Descubra agora