E nós demos risadas

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"The ocean washed over your grave"

Beach Life-In-Death, Car Seat Headrest

— Começamos pela "ofensa" que acabou não sendo tão insultante, e ficamos com a "bruxinha" pairando no ar sem resposta. Passamos pelo "olhar" que acabou na experiência da boneca. E agora...

— Chegamos finalmente na lágrima. Mas eu não sei se tem muito o que analisar nessa ação, eu meio que já disse tudo que lembro sobre a lágrima, e não é pela razão dessa lágrima que estamos aqui de qualquer jeito.

Estamos aqui porque nossas passagens caíram com números seguidos. Mas ele tinha um ponto, tudo aquilo que tínhamos conversado era basicamente uma análise da lágrima, já que a ação em si da lágrima não tinha muito o que procurar. A avó tinha simplesmente chorado.

— Viu só, por isso devíamos voltar pra boneca. — Ele tinha uma satisfação na voz, provavelmente achava que a resposta estaria na boneca.

— Você tem algo em mente?

— Bom, podemos começar reunindo o que sabemos da boneca.

— E isso seria?

— Sabemos de quem ela é, e do que é feita.

— Da sua amiga; e de pano. Algo mais? O que as bonecas têm além disso?

— Hmm... Não sei, marca?

— Você disse que ela parecia ser feita à mão, né?

— Sim.

Tentei imaginar a cena na minha cabeça. Uma velhinha em uma cadeira de rodas, assistindo tudo e nada ao mesmo tempo. Uma sentinela que assiste a tudo, mas não participa. Como aquelas árvores, que após darem tudo que tinham em sua jornada, agora cumprem silenciosamente seu papel de observarem os mais jovens repetirem o mesmo percurso, guardando-os pacientemente. Para que quando os peregrinos mais jovens ao passarem, e descansem na sua sombra, e contemplem a árvore, talvez se lembrem que ela estava na busca pelo fim da muralha assim como ele, talvez alguns até prestem uma reverência e fiquem comovidos diante a grandeza daquela árvore guardiã, e levem consigo sua história, para passar aos outros jovens peregrinos. Mas a maioria dos viajantes só estão com muita pressa e muitas vezes sequer param na árvore guardiã, pode ser até que se sintam observados, talvez lhes desperte um ligeiro sentimento perturbador, a imagem daquela guardiã lembrando-o do que virão a ser. E por isso apenas passam. Seria por medo? Apenas pressa? Ou será que pensam que por trás daquela árvore não tem ninguém realmente observando alguma coisa, que aquilo não passa de um receptáculo vazio, a sombra de algo que existiu no passado.

Olhei pela janela e as nuvens se abriram deixando passar uma tímida luz da lua, e por causa dela consegui ver as silhuetas por trás da muralha. Toquei no vidro sentindo sua frieza e resistência, e por mais que desejasse, eu só podia ver as coisas lá fora de relance, apenas sugestões e sombras.

Naquele momento comecei a me sentir meio estranha, um torpor esquisito começou a crescer desde o peito e foi se espalhando pelo meu corpo. No começo pensei ser apenas sono, deveria ser de madrugada, mas percebi que não era isso. O torpor frio começou a invadir minha mente, eu pensava em palavras mas era como se não fosse conseguir pronunciá-las se começasse a falar. Era uma apreensão, uma sensação parecida com um medo de ficar com medo, algo que tinha seu fim em si próprio, que girava e girava, dentro da minha cabeça. Quanto mais pensava na avó e nas sombras lá fora, a sensação ameaçava descer para meu peito, ou pior, forçava saída pelos meus olhos, não... Eu não queria chorar sem motivo algum.

Respirei fundo discretamente, e exalei a mágoa lentamente, inspire a dor, expire a mágoa, e siga em frente. Sempre funcionava.

Percebi que estávamos há um tempo sem falar nada, alguma coisa me dizia que na verdade nenhum de nós queria falar.

— Acho que cheguei em uma... Espera. Eu sei que você já disse mas... Você tem certeza que sua amiga disse: "Só uma boneca de pano" ?

Ele ficou em silêncio por um instante, se as luzes não tivessem ficado para trás naquele momento eu poderia vê-lo segurando o queixo naquela expressão de confusa reflexão.

— Sim, foi algo assim.

— Bom, então. Veja se concorda comigo. A avó fez a boneca à mão, e a deu de presente para a neta quando essa era pequena.

— Sim, sim, pode ter acontecido.

— E, bem... Acho que sei porque a avó derramou aquela lágrima. Ela percebeu o esquecimento, aquilo a abalou.

—Esquecimento? Você fala sobre a minha amiga ter deixado a boneca largada na caixa? Bom, mas isso é meio normal não? As crianças param de brincar e deixam os brinquedos para trás. Mas minha amiga guardou por todo aquele tempo, e a estava levando para a nova casa, mesmo só uma boneca de pano.

— Não era só uma boneca de pano, era a "bruxinha" dela.

Ele ficou em silêncio por um instante. Depois reuniu ar como se estivesse prestes a cantar.

— O nome! Sim! A boneca se chamava bruxinha. É isso!. A avó, a vovó... — A voz dele foi ficando levemente mais grave, aos poucos tomando um tom tenso, quase arrependido. — Ela tentou lembrá-la, né? Ela ouviu, sim claro, ela ouviu ela dizer, "só uma boneca de pano", não "minha bruxinha", nem mesmo "a boneca que minha avó fez pra mim", apenas...

— "Só" uma boneca.

— Nós demos risada, sabe. Risada da velhinha que estava xingando a neta de bruxa.

Ele praticamente balbuciou as últimas palavras. A voz dele tinha tomado um ar de culpa, e eu não conseguia entender o porquê. Tínhamos resolvido o mistério, mistério esse que nós mesmos criamos. Tudo isso não passava de especulação vazia, baseada em nada. Praticamente criamos teorias que satisfizessem nossas questões, que nós mesmos inventamos. Mas apesar disso, agora tudo aquilo era verdade para nós.

— Então... Acha que faltou alguma coisa?

— Como assim?

— Para ser resolvida.

Ele ficou em silêncio, e mesmo na escuridão e sabia que ele me dava aquele olhar de confusão perplexa que as pessoas costumavam me dar. Mas de repente ouvi vindo dele uma risada embargada num soluço, seguido de uma fungada, tudo soando como o som de um leão marinho. Eu nunca ouvi o som de um leão marinho. Será que eles...

— Ai, ai. Você realmente tem um quê de detetive sabia. Não, não, estou satisfeito sabe, isso agora virou uma verdade para mim. Você realmente me ajudou nessa, sabia? Se não fosse por você eu nunca teria visto esse lado das coisas, mas de alguma forma eu senti que tinha algo ali, deve ter sido por isso que aquela cena não saía da minha cabeça. Espero um dia voltar a ver a avó sabe, talvez dar um abraço nela, e dizer que me lembrarei dela enquanto tiver andando nessa estrada. Bom espero...

A voz dele foi ficando disforme, e eu acabei me recostando no vidro novamente. Meu braço de repente havia ganhado um conforto que nenhum travesseiro de leões marinhos... Que som fazem os leões marinhos? Será que uma dessas sombras do outro lado da janela poderia saber? Alguma das árvores sentinelas? Seria essa a questão que os deuses respondiam ao fim da muralha? Eram tantas perguntas, tantas imagens indo e vindo na minha mente. E de algum lugar eu conseguia ouvir uma voz discursando disformemente, parecia vir do fundo do mar.

Acho que devo ter adormecido.






Nota do Autor

Olá! Nossa, você chegou até aqui?! Você realmente leu tudo?   👉👈?  Espera, preciso me recompor...

Essa pequena história é um teste para uma ideia de uma história maior, tipo com personagens que tenham nome, uma trama, esse tipo de coisa. Espero que tenha gostado, ou ao menos se divertido um pouco. Fique à vontade para mandar mensagens e interagir. Muito obrigado por ler!


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⏰ Última atualização: Jan 09, 2022 ⏰

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