O barulho da chuva abafa os gritos e tiros que rodeiam meus ouvidos. As gotas que caem pelo meu corpo quase me fazem esquecer do sangue que, muitas vezes, me banhou. Mais um dia de guerra, mas, agora, não contra meus inimigos. Desde que os gatos venceram, eu venho em uma constante batalha contra mim mesmo. Eu não quero morrer, mas por que continuar vivendo? Já faz quanto tempo que eu me pergunto isso, eu nem sei mais. Eu só consigo lembrar de todo o mal que fiz e todas as vidas que tirei. Cada olhar, cada grito, eu me lembro de tudo. Meus aliados foram todos mortos, eu perdi a memória sobre toda minha família... Aqueles ratos que morreram, acho que estão mais felizes do que eu.
Tremendo, eu aponto minha arma uma última vez. Eu respiro fundo e cerro meus olhos, tentando esvaziar minha mente. Como todas as noites, ao fechar os olhos eu tenho a visão clara de todos aqueles dias. Eu sou incapaz de segurar as lágrimas, que se camuflam com a chuva que não para de cair... Eu começo a rir dos bons momentos com os outros soldados.
Boas lembranças? Que engraçado.
Eu lembro de Stuart sendo devorado ainda vivo. Eu lembro de Maggi sendo fatiada com uma faca e depois sendo servida aos filhos daquele desgraçado.
A risada se torna uma tosse, que rapidamente viram soluços. Eu começo a chorar e seguro forte a minha arma com as duas mãos. Eu dou um grito, desesperado, como se buscasse forças para fazer aquilo. Eu não consigo mais controlar minha respiração, eu não consigo parar de soluçar.
Socorro, por favor, alguém.
- O que está fazendo, moço??
Meu estômago está revirado. Eu respiro fundo para segurar o vômito e aperto o cano da arma forte contra minha cabeça. Eu me sinto sufocado, não consigo mais respirar. Eu dou pequenos gritos, como se simulasse aqueles na minha cabeça. Quando percebo, estou cambaleando para trás, até que bati as costas em uma parede. Eu não sei o motivo, mas começo a bater a nuca nessa parede, rindo compulsivamente e tentando recuperar o fôlego a cada batida. Eu estou quase apertando o gatilho, mas mordo forte meus lábios, até que sangrem, como se batalhasse contra meu corpo.
- Moço? Senhor? O que está acontecendo?
Eu sinto uma mão tocando meu braço e, então, consigo respirar novamente. Eu só escutava gritos e desespero, mas, agora, eu escutei uma voz doce e inocente. Eu não estava vendo nada, até que, ao recuperar o fôlego, enxerguei um pequeno rato com uma capa verde me encarando com medo e preocupação.
- Quem é você? - Eu indago, com minha voz trêmula
Com seus pequenos olhinhos, ele parece lacrimejar. Não é por menos, eu tive mais um desses meus ataques, e acho que nenhuma criança gostaria de presenciar um marmanjo gritando e chorando com uma arma apontada para a cabeça. Ele ficou calado por alguns segundos após minha pergunta, e isso foi tempo suficiente pra eu me recompor e jogar a arma no chão. Agora, com a respiração controlada, eu acho que recobrei a consciência.
- Pequeno - Eu digo, depois de limpar a garganta - Você.. não deveria estar sozinho aqui.
- Eu... - Ele começa, claramente ainda assustado comigo. - Não acho que o senhor deveria apontar uma arma para a cabeça, e mesmo assim estava fazendo isso.
A voz dele falhou umas duas vezes enquanto falava isso... Porém, além do medo, eu sinto que ele está preocupado.. Comigo. Quando olho melhor para o garoto, além de sua capa, vejo que está com um arco e uma aljava em suas costas. Em nenhum momento, mesmo com uma arma na mão, ele achou que eu pudesse ser uma ameaça. Sendo rato ou não, todos os que eu convivia teriam, no mínimo, acertado minha perna. Foi um ato simples, talvez movido pela inexperiência, mas me deixou intrigado.
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Pós Guerra - Clemência
AksiSob a falsa ilusão de paz, cachorros, gatos e ratos viviam em sociedade nesse mundo. No entanto, os felinos começaram a questionar a dominância dos cães, causando assim um sentimento mútuo de revolta entre seus semelhantes. Unidos pela indignação, g...