A escola era fichinha, conseguia lidar com tudo maravilhosamente bem, eu amava desenhar na aula de artes, era o meu santuário, mexer com tintas e artesanato eu amava. Foi um garoto que me levou lá no primeiro dia, por que eu estava perdida.- Na verdade não queria entrar por medo de estragar tudo- Nesse dia fiz um amigo novo, seu nome era Arthur. Arthur também era negro o que me confortava, eu não contava pra ninguém mas sentia como se estivessem pisando em ovos pra falar comigo.
Eu e Arthur sempre pensamos igual, ele me entendia, em tempos onde eu não tava bem pra sair ele ficava comigo, com pipoca, um filme e um abraço bem confortável, ele tem o cabelo crespo e curto, parecido com o meu, ele que hidratava e finalizava o meu. Ele rouba minhas camisas, porque ele dizia que ficavam bem nele.- realmente ficavam bem, mas as camisas eram minhas né- Ele escuta as mesmas musicas que eu, somos fãs de The Strokes e Phoenix. dividíamos praticamente o mesmo neurônio, tipo tico e teco.
Sabe nem sempre o Arthur estava perto pra acompanhar minhas ideias doidas, as vezes o vazio e o silêncio tomavam seu lugar, o desespero de ficar sozinha, excluída e arrancada de perto de grupos. Eu até tentava me enturmar mas como sou muito quieta as pessoas se incomodavam comigo, as vezes pra não me sentir vazia e sozinha eu sentava perto de grupos que eu conhecia, mas longe o suficiente pra não falarem comigo. Me doía o peito não ter alguém próximo ali. Nos outros dias o Arthur me entendia, ele sabia que eu não gostava de falar, mas eu escutava tudo. Eu sou uma boa ouvinte.
Era estranho olhar para o céu, eu sinto que essas estrelas querem me dizer algo, talvez seja alguma nova constelação ou algum segredo espacial. Estrelas sempre foram difíceis de serem amadas por mim, pra mim eram só coisas bonitas que nunca ficavam sós.
Eu nem sempre fui assim cismada com tudo, eu fiquei assim conforme eu ia nos lugares e me olhavam estranho, quando ficaram sabendo da bipolaridade, nossa isso me seguiu por anos, ninguém confiava no que eu falava, eu sempre era vista como não confiável, isso me deixou com insegurança, e por anos não lidei muito bem com a situação e minha fobia social não ajudou em nada.
Teve um dia que minha mãe me levou no psiquiatra, com a desculpa de ver meus tiques, eu tinha alguns como, bater a perna e coçar os braços, acabou que durante a consulta ele anotava muito, e no final explicou que eu tenho bipolaridade, e ansiedade. Até receitou alguns comprimidos que tomo até hoje. Pra mim foi um choque, nunca tinha pensado nessa possibilidade, eu encarei como algo que tinha que esconder por que de fato me tratariam diferente, meus pais me encorajavam a esconder também por que tinham medo que as oportunidades que já eram escassas se esvaíssem quando soubessem.
A vida melhorava quando eu lia meus livros, ou passava as tardes escutando música com o Arthur, eu flutuava numa nuvem alcançando essas pobres estrelas com paradigmas existenciais, ou mergulhava no fundo do mar, e conseguia ver os peixes dançando, eles dançam muito bem, mergulhavam com suas barbatanas fazendo carão. Tudo bem talvez eu tenha problemas com a realidade, mas ela não faz realmente nada de interessante, pessoas nascem, reproduzem e morrem, isso que é ensinado, onde eu me encaixaria, afinal não estou dentro do padrão nem de gênero. É complicado até pra quem quer descomplicar tudo. O mundo não passa de uma bola com água e seres fatigantes que não saem do lugar.
Meus pais são difíceis, mas amorosos, eles se preocupam demais com tudo. Mas fui muito bem criada, tive que me mudar quando souberam de quando mudei o gênero no RG, foi uma partida dolorida, eu fiquei com muita raiva, mas uns meses depois voltei a ligar pra minha mãe, perguntava como estava tudo, e se estavam cuidando bem do Nino que era um papagaio velho que minha mãe tinha, sabe eu não entendo por que meus pais me mandaram embora, mas enfim, eles sentem saudades como todos os pais que se importem o suficiente.
Hoje moro sozinha, num apartamento pequeno próximo a faculdade, gosto de pintar telas enquanto escuto música e como algum docinho, a vizinha do lado sempre me da os doces que sobram de festas, ela organiza eventos e traz pra casa o que sobra pra não jogar fora. Amo o tempo que é só pra mim.
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Te conheço a cada dia
RomantikEste romance retrata Kay que vive em Campina grande, Paraíba, cursa design na UFCG, ela é não-binária e bipolar e este diário contem seus relatos, onde se vê como as coisas realmente acontecem. Enquanto isso em outra parte dos relatos está sendo pre...