Uma escuridão profunda e palpável inundava todo o ambiente, forçando os olhos a se adaptarem e, no limite dos sentidos, vislumbrarem um contorno tênue entre a insanidade e a razão, uma fronteira cruzada pelos caminhos da imaginação e pelos abismos mais escuros do cérebro.
Nos recôncavos mais obscuros e afastados ele sorriu, ele era o conhecimento. E o abismo não se encheu de luzes, nem de sons, contudo as palavras no livro ganhavam vida e forma em vozes carregadas de sotaque a inundar a mente com informações precisas e contundentes.
Sentindo um terrível nó em sua garganta, Joseph, um renomado estudioso em sua cidade e que transitava nos subterrâneos da alquimia, fechou o pesado livro de superfície porosa e buscou, como se busca ar ao se afogar, a janela mais próxima do cômodo onde estava.
Sorveu o ar da brisa vespertina que circulava, sem se importar em nada com o cheiro de fossa proveniente de latrinas próximas. A cidade era um lixo a céu aberto, repleta de pessoas imundas e desprezíveis. Joseph odiava cada uma delas com todas suas forças, mas seguia ordens.
Fixou por alguns instantes sua visão em um ponto distante, permitindo que seus olhos se adaptassem novamente a claridade. Piscava e contorcia o rosto em caretas ridículas, aparentemente sem notar que dois homens aguardavam em sua porta, observando com atenção seus gestos e sem dúvida imaginando se tratar de mais um homem tocado pela genialidade e pelo excentricismo.
- Mestre Joseph, viemos ter com o senhor. - anunciou um dos homens. - Temos interesse em suas aulas, pode nos receber?
A audição estava intacta, mas a visão retornava aos poucos. Reconhecia a voz, mas não o rosto. Por isso, acenou com a cabeça e desceu aos solavancos até a porta no andar térreo. Andar esse mais organizado, limpo e iluminado. Livros decoravam o cômodo, finamente mobiliado com móveis de extremo bom gosto. Mesas e cadeiras confortáveis eram utilizadas por seletos estudantes aceitos pelo alquimista.
A porta foi aberta sem nenhuma cerimônia e uma profusão de odores se digladiavam à entrada da casa. O contraste era gritante entre a limpeza da sala de estudos com a insalubridade malcheirosa sempre presente nas ruas locais.
- Entrem. - disse Joseph desalinhado e com a voz rouca. - Não me recordo de nenhum compromisso marcado para hoje.
- Tem razão, mestre, não marcamos nada. - disse o homem que falava. - Eu me chamo Sammuel e este é meu irmão Julien, ele é mudo, mas muito inteligente.
Deficiências de toda sorte desagradavam Joseph, um homem dotado de brilhantismo, entretanto arraigado em preconceitos mordazes. Incapaz de esconder seu esgar ao ouvir a deficiência do jovem, virou o rosto fingindo tossir.
- Pois bem, diga então qual o interesse de vocês e então verei se posso aceitá-los como meus alunos.
- Mestre Joseph, o senhor ensinou nosso tio os segredos da alquimia e da troca com as forças que regem o universo. - respondeu Sammuel de maneira contida, mas em tom crescente. - Ele se tornou um homem rico e poderoso, mas então arrancou de nossos pais todas nossas propriedades, atirando nossa mãe a loucura e nosso pai ao suicídio.
- Desejam vingança pura e simples? - Joseph interrompera o discurso em tom jocoso, notando que Julien se contorceu de nervoso com a interrupção. Leitor atento de pessoas, ainda que as desprezasse, o mestre alquimista sorria em uma macabra satifasção interna.
- Pagaremos o que for preciso, caso ajude na destruição do nosso tio. - o semblante do jovem era carregado e sério. - Não queremos que ele morra, desejamos destruí-lo e o senhor, mestre Joseph, sabe como.
O mestre alquimista assentiu com a cabeça enquanto fitava os dois jovens, alternando o olhar entre os dois e notando as faces com olhos sofridos e fundos, assustados e trêmulos. Não tinham noção do que estavam a pedir. Anos antes, o tio dos jovens pedira o poder e obtivera através de escusos acordos. O poder da magia nas mãos era grande, mas o preço era alto.
Sem maiores esclarecimentos, o mestre alquimista concordou com os jovens. O preço seria acertado após avaliação dos conhecimentos apresentados pelos futuros alunos. Joseph consultaria seus livros, mas mantendo informações relevantes em segredo. Solicitou que voltassem às três horas da manhã do dia vindouro.
Assim que os jovens se retiraram do cômodo e retornaram em seu caminho para casa, o mestre alquimista abriu um pote escondido atrás de uma pilha de livros. Com cuidado removeu a tampa do objeto de vidro e deixou que o forte aroma presente se contrastasse com o odor das larvas que se moviam e revolviam dentro do pote vítreo.
Retirou uma das larvas do pote, fechou os olhos e deixou seu pensamento vagar por regiões onde a escuridão - não aquela que resulta da falta de luz, mas sim aquela capaz de denotar a inexistência da mesma - fazia morada e levou uma das criaturas até sua boca onde diversos dentes faltavam. Joseph e a engoliu por inteiro e não esboçou nenhuma reação adversa, apenas lambeu seus lábios.
As criaturas larvais tinham aspecto esverdeado e garras com as quais furavam umas as outras. Vermes gerados no interior de deuses e reis, e que hoje repousavam em suas mãos. Os livros profanos comprados durante viagem ao Egito indicavam como obter tais criaturas e a finalidade corruptora e esclarecedora das feras insetóides. Obteve seus exemplares com um sacerdote pagão nas areias do deserto a alguns quilômetros de Cairo. Um devoto de uma entidade esquecida uma seita dentro do culto à Tot, o deus do conhecimento.
Relutou em voltar aos aposentos superiores, mas um chamado em sua mente o impeliu a retomar a leitura interrompida. A voz poderosa e autoritária não apresentava hesitações, avisava que os dois eram alvos perfeitos para o que viria a seguir.
- Mestre, devo permitir que vislumbrem o poder do livro?
O trovão ribombou nos céus e o relâmpago que o precedeu clareou a sala completamente escurecida. O livro aberto indicava uma página assinada com sangue. Um homem negro e careca, com imenso sorriso branco de uma maneira incômoda, tinha as duas mãos espalmadas sobre a mesa onde o livro jazia.
- Aqueles que ouvem minha voz, trilham o caminho do esclarecimento. - disse o homem negro, que vestia um terno que deveria ser a última moda no século XIX. - Sua missão estará cumprida e finalmente estará livre. A magia será toda sua.
Joseph tremia até os ossos. Sentia frio, fome, dor e acima de tudo, medo.
- Obrigado meu senhor. Não o desapontarei.
- Humano, não se iluda. Você não seria capaz disso em mil vidas. - disse o homem negro e de cabeça raspada. - Eu crio os caminhos que trilho. Os vermes se encarregarão do resto.
O mestre alquimista se ajoelhou em reverência esperando que o homem desaparecesse. O que se mostrou frutífero. Anos de trabalho e culto à uma entidade de agenda desconhecida dariam resultado. Joseph fechou todos os livros que deixara aberto sobre a mesa de estudos e regojizou-se ante a conclusão que estava por vir.
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O Descarnado de Mil Faces
HorrorO horror... Um mal cósmico e invencível proveniente dos mais distantes rincões do universo frio e escuro. Alienígena, inconcebível e além da compreensão. Cercado de mistérios, deixa um rastro de destruição, morte e desespero por onde quer que passe...