Mais de cem mil mortos - Parte II

1.2K 63 41
                                    


A mansão construída séculos atrás, erguida inicialmente como uma fortificação, perdera suas muralhas pedregosas e, com o tempo, todo o espaço fora substituído por um gramado de um verde vibrante. Flores eventualmente brotavam esparsas no tapete natural. O cuidado dos jardineiros era admirável, pois o local era um tesouro para a proprietária.

Da janela, em uma época do ano como aquela, deveria ser possível avistar fauna e flora de cores diversas. Naquele dia, naquela semana inteira, no entanto, o jardim definhava. Morto e silencioso, deixava atônitos os cuidadores do local, sufocados pela agonia de não saber qual punição sofreriam pelo deplorável estado dos vegetais. Já haviam presenciado mutilações variadas, açoites e outras torturas desumanas, mas permitidas dentro do espaço da mansão. Sua proprietária era detentora de títulos, terras e bens. Havia pouco que ela não pudesse ter ou fazer. Ou assim era suposto.

Os quartos da mansão secular eram cobertos por seda da mais variada e por tecidos desconhecidos da grande plebe e importados diretamente da África e Ásia. Conforto era algo que abundava por ali. A jovem afundava sua cabeça, pesada e dolorida, no travesseiro de plumas. Trazia uma vaga lembrança do que havia passado na noite anterior, aquele olhar carregado de perversidade e toda a dor de sentir crenças sendo desfeitas. A própria realidade havia sido redesenhada diante de seus olhos, algo que persiste nas memórias, por mais que se tente apagar.

Como dona da imensa propriedade, herdada dos pais de seu falecido marido, a mulher que conduzia o culto nas clareiras nos limites de Lisboa, não fazia ideia exata do que havia provocado. Jogou sobre o corpo as primeiras peças de roupa que encontrou, mas não sem notar que o traje que havia utilizado na cerimônia na noite anterior era agora um trapo coberto de sangue seco. As manchas avermelhadas no formato de pés deformados terminavam em sua cama e iniciavam na janela do aposento, de onde era possível avistar o mar, ao longe.

Ignorando a vista que sempre a agradara, ignorando a apreensão dos criados que mordiam os lábios e se encolhiam nos aposentos por onde a jovem senhora pisava, ela caminhou com passadas pesadas, atravessando toda mansão em um curto espaço de tempo. Dirigiu-se para o subsolo, onde, em uma galeria afastada, era possível ouvir sons abafados das paredes e goteiras perpétuas pingavam com líquidos que evaporavam antes de atingir o chão.

O aposento era bloqueado por uma pesada porta de ferro, mantida sempre trancada por correntes. Naquele momento, no entanto, estava aberta. A presença da senhora do local era aguardada pelo homem que vivia enclausurado no subsolo da construção. O cheiro de peixe apodrecido exalava do ambiente, nauseando a qualquer um que ousasse se aproximar dali.

Rabiscos feitos à base de fezes, sangue e outros fluídos corporais estavam dispostos nas paredes, sem nenhuma conexão aparente, sem nenhuma conexão com a realidade que uma mente sã esteja disposta a aceitar. O responsável por tais desenhos, um senhor de pele morena, ainda que empalidecida pela rara exposição ao sol, trazia os olhos vazados por ferimentos auto infligidos. Marcas de laceração por todo o corpo impactavam tanto quanto os livros espalhados pelas mesas do local. Produzidos em estranhas páginas e com anotações em alto relevo, os objetos exalavam toda a mácula alienígena e profana que traziam encerrados em suas páginas hediondas.

A mulher que conduzia os cultos profanos ainda não havia esquecido a visão que tivera naquela noite. Seus olhos ainda ardiam, seus pelos ainda se eriçavam, seu coração disparava. O homem diante dela havia sido trazido dos confins do continente africano, aprisionado para fornecer os estudos e conhecimentos almejados pela rica fidalga. O homem de olhos vazados dominava diversos idiomas existentes apenas nos sonhos de mentes perturbadas, era capaz de acessar os mundos acima e abaixo de nossa realidade tangível. Acima de tudo, naquele ambiente fétido e repugnante, sem nenhum contato físico com o mundo exterior, sabia claramente que um terror além da compreensão caminhava e que ninguém estaria a salvo de seu terror.

O Descarnado de Mil FacesOnde histórias criam vida. Descubra agora