O Descarnado de Mil Faces: Livro de Tot II

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Mais tarde, exatamente três horas da manhã ao badalar dos sinos da igreja local.

Os dois irmãos retornaram conforme o combinado, sentindo durante o trajeto profundo estranhamento, pois todos os animais com que cruzavam ameaçavam avançar sobre eles. Pássaros, gatos e cães.

Seguindo firmes em seu propósito de vingança, mantiveram a mesma passada até a casa do mestre alquimista e foram recebidos sem delonga pelo sombrio instrutor. Sobre a mesa de estudos, iluminada por parcas e mal posicionadas velas, dois livros repousavam. Este sendo o melhor verbo para descrevê-los, pois na penumbra, ambos os livros aparentavam respirar de maneira pesada, mas não ruidosa.

- O menor dos livros sobre a mesa é um diário que adquiri faz vinte anos no Egito. — começou Joseph, que deixara a porta entreaberta e aguardava sentado em uma das poltronas utilizadas por aqueles que se reuniam com ele. Seus olhos faiscavam de emoção, estava próximo de concluir uma tarefa que iniciara décadas atrás. — Trata-se de um diário, pertencente a um sacerdote do deus Tot. Ele fizera parte de uma longa linhagem de sacerdotes que serviram a diversos faraós-deuses. Foram conselheiros espirituais e tomadores de decisões ocultos nas sombras. Este livro foi meu principal mentor para chegar aonde cheguei.

Os três se encaravam com olhares fixos e intensos. Era um momento de definição e a pausa na fala do alquimista mestre deixava o ambiente ainda mais aflitivo. A porta, deixada aberta após os irmãos entrarem, bateu com violência sem nenhuma evidência de vento. Ela apenas chocou-se contra o batente, trancafiando de maneira ruidosa.

- Pois bem. O segundo dos livros, — Joseph molhou sua garganta com sua própria saliva e continuou seu discurso. — trata-se do livro de Azatoth, aquele que guarda todos os segredos do universo. Assinem no segundo livro com o sangue de sua mão esquerda e poderão ter acesso aos meus conhecimentos e aos dos sacerdotes de Tot do passado.

- Só precisamos assinar nossos nomes? — perguntou Sammuel vacilante.

Somente naquele momento Joseph havia reparado nos dois jovens. Eram moços, não mais do que vinte anos e traziam em si uma beleza considerável. Olhos castanhos, cabelos lisos e brilhosos, corpos atléticos. Os rostos eram desenhados, com bocas e narizes perfeitamente simétricos. Nada nos dois parecia estar em excesso. O momento fosse outro, o alquimista teria outro uso para os dois jovens.

- Sim. — respondeu o alquimista. - A faca está sobre a mesa e só valerá se a utilizarem.

Era uma faca cega. Precisariam furar com a ponta da mesma e rasgar fundo a carne para obterem o sangue necessário.

E assim foi feito.

Sammuel, o mais velho, sentiu toda a dor e se deteve no meio do procedimento. Julien tomou a iniciativa e a faca das mãos do seu irmão. Sem pestanejar rasgou sua mão com firmeza e assinou seu nome no profano livro com o sangue que jorrava quente da palma de sua mão.

O jovem mudo se contorceu por inteiro ao terminar de assinar. Seu corpo todo entrava em violenta convulsão e ele se atirava contra a parede buscando cessar o sofrimento que sentia. Sua mente era inundada com informações, perguntas, diagramas... Passado, presente e futuro não eram nada além de um emaranhado de informações mal distribuídas aos seus olhos.

- O que está acontecendo com meu irmão? — perguntou Sammuel, obviamente assustado, mas curioso acerca do fim de tudo. Em seu íntimo não se importaria em perder seu irmão para obter a vingança contra seu tio.

- Ele está renascendo. — respondeu o alquimista. — Está se livrando das limitações e me livrando de minhas dívidas.

Sammuel olhava incrédulo para o alquimista. Imaginava os riscos concernentes ao que desejavam fazer, mas não figurava entre os perigos a possibilidade de serem traídos. O que de fato, não ocorrera.

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